Introdução 

Por criatividade entendo simplesmente novas formas de pensar sobre as coisas.

A maioria das pessoas relaciona a criatividade exclusivamente com as artes, ou seja, a música, a pintura, o teatro, o cinema, a dança, a escultura, etc., etc.

Não é verdade. A criatividade está presente em todos os domínios da vida, da ciência aos negócios ou ao desporto.

Sempre que inventamos uma maneira mais adequada de fazer algo, estamos a ser criativos.

Outro mito é o de que a criatividade é inata. Também não é verdade. Todos podemos ser criativos.

Quando frequentei a escola, no final da década de 1940 e na seguinte, nunca ouvi um professor mencionar a palavra «criatividade». Extraordinário, não é?

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

Diga-se, porém, que isso se explica em parte pelo facto de eu ter escolhido o ramo das ciências — os meus exames de conclusão do ensino secundário foram nas disciplinas de Matemática, Física e Química —, o que, naturalmente, não me deixava muito espaço para ser criativo.

É preciso saber muito sobre ciência antes de pensar em abordá-la de forma criativa.

Mais tarde, fui estudar Direito para Cambridge. Não se pode dizer que seja uma área que prima pela criatividade. Tudo o que nos pedem é que saibamos em que categoria determinados factos devem ser enquadrados.

Seja como for, não obstante as minhas áreas de estudo, é manifesto que nenhum responsável pelo sistema educativo britânico mostrou ser sensível à necessidade de ensinar a criatividade.

E a criatividade pode, de facto, ser ensinada. Ou, em rigor, é possível ensinar as pessoas a criarem as circunstâncias que lhes permitirão tornarem-se criativas.

É este o tema deste pequeno livro.

A Mentalidade Criativa

Foi para mim uma surpresa descobrir que era dotado de alguma criatividade. Estudava em Cambridge, onde conhecera um grupo de pessoas muito simpáticas que frequentavam um pequeno clube, perto da minha residência, ligado a uma associação chamada «Footlights» (1). No palco do clube, montavam espectáculos compostos de pequenas rábulas, monólogos e números musicais.

Não foi o desejo de fazer parte do mundo artístico que me levou à Footlights. Longe disso! Eu ia ser advogado! Entrei para o clube, porque os seus membros eram a malta mais simpática que eu conhecia em Cambridge. Eram óptima companhia — como não podia deixar de ser, pois, cada uma à sua maneira, eram pessoas divertidas —, além de formarem uma mescla interessante de classes sociais e interesses académicos. Por algum motivo — talvez por terem sentido de humor —, não eram emproados, nem exibicionistas, nem gabarolas.

Para ser admitido na Footlights era preciso escrever qualquer coisa. Inventei algumas rábulas e fui aceite. Conforme vim a descobrir, todos os meses o grupo organizava os chamados smokers — versão abreviada de smoking concerts (2), uma expressão fora de moda. Tratava-se de um espectáculo levado à cena na sala da Footlights e no qual participavam todos os membros da associação. Como tínhamos de nos levantar para apresentar o nosso número, interessava-nos criar um ambiente amistoso e agradável, o cenário perfeito para quem se estreava na representação.

E foi durante o processo de escrita dessas rábulas — o primeiro trabalho imaginativo que fiz de forma consciente — que percebi que conseguia ser «criativo». Por outras palavras, se escrevesse um texto num pedaço de papel e o representasse, conseguia fazer o público rir. E o importante aqui é que… eu estava a escrever originais. (Não digo que não fosse influenciado por muitas outras pessoas e programas de comédia que adorava — em particular The Goon Show (3) , mas o que estava no papel era… meu.)

Então, comecei a tomar consciência de outro aspecto interessante. E muito estranho também.

Quando escrevia à noite, sozinho, muitas vezes ficava encalhado e a dar voltas à cabeça, sentado à minha pequena secretária. Invariavelmente, acabava por desistir e ir para a cama.

Na manhã seguinte, acordava, preparava um café e sentava-me à secretária; sentava-me e, quase imediatamente, a solução para o problema que me apoquentara na noite anterior… tornava-se óbvia! E com tal clareza que eu não conseguia entender como podia ter-me escapado na véspera. Mas escapara, de facto.

Foi assim que comecei a aperceber-me de que, se trabalhasse antes de me deitar, acabava muitas vezes por ter uma ideia criativa durante a noite e solucionar o problema que tinha em mãos. Era uma espécie de presente, uma recompensa por todo o meu esforço para resolver o quebra-cabeças. Comecei a pensar para comigo: «Só pode ser porque enquanto estou a dormir, a minha mente continua a trabalhar de maneira a dar-me a resposta de manhã.»

Foi uma tomada de consciência muito estranha. Para mim, pensar sempre fora sinónimo de franzir muito o sobrolho e de um esforço tremendo.

Ainda não me refizera desta surpresa quando aconteceu outra coisa.

Por vezes, colaborava com o meu amigo Graham Chapman, com quem tinha escrito uma paródia de um sermão da Igreja Anglicana. (Na época, Graham e eu vivíamos obcecados com a ideia de fazer humor a partir de cenas da Bíblia, de tal maneira que alguém que entrasse no meu quarto e visse uma Versão Autorizada em cima da secretária, dizia: «Oh! Estiveste a escrever rábulas outra vez.»)

Graham e eu considerávamos que o texto estava bastante bom. Por isso, fiquei tremendamente atrapalhado quando descobri que o tinha perdido. Sabia que Graham ficaria furioso e então, depois de desistir de tentar encontrá-lo, sentei-me e reescrevi-o todo de memória. De facto, foi mais fácil do que eu esperava.

Acabei por encontrar o texto original e, por curiosidade, decidi aferir quão fiel fora a minha memória quando o reescrevera. Estranhamente, descobri que a versão redigida de memória era melhor do que a que Graham e eu tínhamos escrito. Fiquei desconcertado.

Uma vez mais, fui obrigado a concluir que a minha mente continuara a pensar sobre a rábula depois de Graham e eu a termos terminado. Além disso, também aprimorara o que ambos escrevêramos sem que eu tivesse feito qualquer tentativa consciente para tal. Quando a recordara, era já uma versão melhorada.

Enquanto reflectia sobre tudo isto, percebi que se assemelhava ao que sucede quando temos uma palavra «debaixo da língua»: quando não conseguimos lembrar-nos de um nome e revolvemos a memória à sua procura até sermos forçados a admitir que não nos ocorre nada… instantes depois, quando a nossa mente já está ocupada com outra coisa, eis que surge o nome tão procurado. Mesmo depois de desistirmos de avivar a memória, o nosso cérebro continua manifestamente a laborar.

Comecei, então, a dar-me conta de que o meu inconsciente permanecia alerta e activo sem que eu tivesse consciência disso.

A grande dificuldade do termo «inconsciente» está nas conotações relacionadas com Sigmund Freud e a psicanálise. Para ele, o inconsciente era uma espécie de caixote de lixo onde encafuamos todos os pensamentos e sentimentos desagradáveis que nos assustam ou envergonham. Esforçamo-nos por mantê-lo tapado até as nossas forças se esgotarem e sucumbirmos a um esgotamento nervoso.

Criatividade
Criatividade créditos: Objetiva Editora

Livro: “Criatividade”

Autor: John Cleese

Editora: Objectiva Editora

Data de lançamento: 26 de outubro

Preço: 12,50 €

Eu, no entanto, uso a palavra «inconsciente» numa acepção completamente diferente, para designar tudo o que habitualmente ocorre dentro de todos nós e impede que nos sintamos assoberbados pela quantidade de coisas com que temos de lidar no quotidiano.

Eis um exemplo: a nossa fisiologia. Quando acabamos de comer, o nosso organismo inicia a digestão da refeição que ingerimos. Tentar ganhar consciência do processo digestivo não impedirá que ele aconteça. O melhor que podemos fazer é facilitá-lo, por exemplo, abstendo-nos de comer duas sobremesas antes de uma corrida de 400 metros.

Ou então pensemos no que sucede quando pestanejamos ou nos coçamos porque temos comichão ou quando passamos a língua pelos lábios. São movimentos que, de uma maneira geral, executamos sem termos consciência do que fazemos. Se alguém nos atira um tijolo, baixamo-nos. Não pesamos as alternativas que se nos apresentam.

Mesmo as acções bastante mais complexas e que exigem competências adquiridas obedecem ao mesmo princípio. Podemos barbear-nos, vestirmo-nos ou apertar os atacadores dos sapatos sem termos de nos concentrar no que estamos a fazer. O nosso corpo está habituado a executar todas as acções necessárias e, na verdade, fá-lo melhor se não pensarmos nelas. Da próxima vez que tiver de apertar os atacadores dos seus sapatos, experimente concentrar-se. Verá que é muito mais difícil.

O mesmo se aplica à fala. Usamos sempre as palavras adequadas sem sabermos como elas nos vêm à mente. Se nos perguntarem qual o nome de um animal chinês com cinco letras que se alimenta de bambu, o termo «panda» surge imediatamente. No entanto, não temos consciência de como isso acontece. Será que a nossa mente espreita primeiro para dentro do ficheiro «China», «Animal» ou «Comedores de Bambu»? Ou para dentro do ficheiro «Palavras com Cinco Letras», evidentemente? Não sabemos. Trata-se, literalmente, de um processo inconsciente.

Pensemos agora nas coisas verdadeiramente habilidosas que conseguimos fazer sem nenhum esforço consciente. Podemos conduzir de casa para o trabalho, em total segurança, sem precisarmos de nos concentrar em cada um dos processos musculares envolvidos na actividade de condução, apesar de a nossa mente estar ocupada com outra coisa qualquer. (É evidente que se algo inesperado ou fora do comum sucede, a nossa consciência reage imediatamente e ficamos muito mais alerta para lidar com o sucedido.)

Ou consideremos algo ainda mais complexo como tocar piano. Quando alguém toca piano, não está a pensar conscientemente na tecla que deve premir e com que dedo tem de fazê-lo. O seu inconsciente sabe o que fazer. Mas apenas porque o executante ensaia, ensaia e ensaia.

Sucede o mesmo no desporto. Os jogadores de golfe treinam as suas tacadas, os tenistas treinam as suas pancadas, os jogadores de críquete treinam a sua capacidade de agarrar a bola até conseguirem executar todos estes movimentos sem dificuldade, isto é, sem terem de fazer um esforço mental.

Os melhores jogadores de basquetebol costumam gritar «Pára de pensar!» a um colega de equipa que não esteja num dia bom, pois o pensamento consciente torna o seu jogo mais lento.

Na representação, ter de pensar no que se vai dizer a seguir deixa-nos com menos energia para o próprio acto de representar, pois ela é desviada pela mente consciente para alimentar o esforço de activação da memória.

O nosso inconsciente inteligente é espantosamente poderoso. Ele permite-nos executar a maioria das tarefas da nossa vida sem termos de nos concentrar nelas. Sem ele, não conseguiríamos funcionar. Teríamos demasiado em que pensar.

Tal não significa, porém, que o nosso inconsciente inteligente seja totalmente previsível.

Vejamos um exemplo perfeito. Um psicólogo experimental, nos Estados Unidos, pediu a um grupo de voluntários que observassem alguns caracteres chineses que lhes eram mostrados num ecrã:

Criatividade - John Cleese 1
Criatividade - John Cleese 1 créditos: Objetiva Editora

Em seguida, convidou-os a regressarem dias depois para observarem mais um conjunto de caracteres. Alguns eram os mesmos que tinham visto na semana anterior, outros eram completamente novos:

Criatividade - John Cleese 2
Criatividade - John Cleese 2 créditos: Objetiva Editora

Foi-lhes, então, pedido que indicassem os caracteres que reconheciam da sessão anterior.

Os resultados foram, como se pode imaginar, perfeitamente inúteis. Nenhum dos participantes foi capaz de recordar as formas pouco familiares observadas anteriormente.

Os psicólogos repetiram a experiência com outro grupo de voluntários. Desta vez, após a segunda sessão, os participantes não tiveram de identificar os caracteres observados na semana anterior. Apenas lhes foi pedido que indicassem os caracteres de que mais gostavam.

Pode parecer estranho, mas os elementos do grupo pareceram compreender o que lhes era pedido e conseguiram dizer: «Sim, prefiro este carácter àquele.»

E agora o facto mais impressionante… Os caracteres de que mais gostavam eram os que haviam observado antes.

Reflictamos um pouco sobre isto. O inconsciente dos participantes reconheceu os caracteres chineses mostrados na semana anterior, mas, em vez de os impelir a dizerem «Sim, vimo-los a semana passada», limitou-se a gerar um sentimento de agrado.

E esse é o problema do inconsciente. É que ele é inconsciente. Não é possível dar-lhe ordens, nem bater-lhe com um pau. É necessário persuadi-lo recorrendo a todo o tipo de estranhas e astuciosas artimanhas. E ser inteligente no modo como interpretamos o que ele nos diz.

Simplificando, não podemos fazer uma pergunta ao nosso inconsciente e esperar que ele nos dê uma resposta directa — uma mensagem verbal curta, ordenada e organizada. E isto porque o nosso inconsciente comunica o seu conhecimento unicamente através da linguagem do inconsciente.

E a linguagem do inconsciente não é verbal. É comparável à linguagem dos sonhos. Mostra-nos imagens, transmite-nos sentimentos, envia-nos estímulos, sem que consigamos perceber imediatamente onde pretende chegar. Retornarei a esta ideia mais adiante, pois é muito importante.

*

(1) — O Cambridge University Footlights Dramatic Club (ou, simplesmente, Footlights) é um clube de teatro amador fundado em Cambridge, em 1883, e dirigido por estudantes da Universidade de Cambridge. (N. da T.)

(2) — Smoking concerts — espectáculos muito populares na época vitoriana, durante os quais o público, constituído exclusivamente por homens, conversava sobre temas políticos enquanto fumava e ouvia música ao vivo. O modelo de espectáculo tornou-se obsoleto, mas a designação manteve-se e continua a ser usada para designar espectáculos de variedades organizados por estudantes, sobretudo em Oxford e Cambridge. (N. da T.)

(3) — The Goon Show, programa de comédia radiofónico produzido e emitido pelo BBC Home Service, entre 1951 e 1960, protagonizado por Spike Milligan, Peter Sellers, Harry Secombe e Michael Bentine. (N. da T.)