O Homem com Mil Filhos (Minissérie documental, Netflix).

Para muitas famílias e mulheres nos Países Baixos, Jonathan Meijer era alguém na Terra enviado por uma entidade divina. Alto, de olhos azuis e abençoado com longos e fartos caracóis loiros, o seu perfil destacava-se entre os dadores dos sites de fertilização. Especialmente porque, a juntar ao físico, havia as nuances de ser um homem carismático, fiável e que só queria ajudar. O pior foi quando um grupo de famílias descobriu que o homem em quem confiou foi dador de esperma na conceção de centenas ou até milhares de crianças em todo o mundo.

Nesta série documental de três episódios, num estilo muito idêntico ao de “O Impostor do Tinder”, os produtores e realizador tentam juntar as peças do caos causado por Meijer em vários países e continentes — para além de 11 bancos de esperma nos Países Baixos e de “doações privadas” que fez, Meijer parece ter descendência nos quatro cantos do mundo.

A história não surge do nada nem é de agora: o caso começou nos Países Baixos há uns anos, galgou fronteiras e até já saltou o Atlântico para ser capa do New York Times em 2021. E o que se passou foi que Meijer dizia que só tencionava doar o seu esperma a um pequeno número de famílias e mulheres, mas com o tempo tornou-se claro que lhes tinha mentido.

Segundo a série, apesar dos esforços das famílias para que dissesse a verdade, Meijer recusou sempre duas coisas: parar de fazer doações e admitir o número total de filhos. Uma das mães entrevistadas, contudo, arrisca um palpite: 3 mil crianças. E sublinha: “[esta estimativa] é de apenas um banco de esperma. E nós sabemos que ele esteve em pelo menos 11”. Meijer recusa que este número seja real, mas admitiu em tribunal ter perto de “600”.

O problema, porém, realça O Homem com Mil Filhos, não está só nas mentiras que magoaram centenas de pessoas e podem afetar o futuro de outras centenas de crianças. As ações de Meijer vão ter consequências, nomeadamente no que toca a algo conhecido como o “complexo de Luke e Leia” (nome das famosas personagens da saga Star Wars, que se beijaram e mais tarde descobriram que eram irmãos gémeos).

“As crianças que não foram criadas juntas têm mais probabilidades de se sentirem atraídas umas pelas outras porque veem alguma familiaridade no rosto do irmão”, explica uma das mães. Ponto que leva um embriologista a realçar depois que existem limites no número de doações que cada homem pode fazer, precisamente para proteger as crianças resultantes do risco de relações consanguíneas ou incesto involuntário.

Na série, uma das mães revelou que só na sua vizinhança, nos Países Baixos, descobriu uma mão cheia de meios-irmãos. Outro pai lembrou que o número de meios-irmãos não é conhecido e que existe a possibilidade real de muitos meios-irmãos se envolverem na universidade ou na adolescência porque têm a mesma idade.

Se tudo isto remete para um sentimento de de ja vu? Sim, até porque o tema já foi explorado pela Netflix no documentário “Our Father”, que conta como um especialista em fertilidade do Indiana utilizou o seu próprio sémen para inseminar as suas pacientes. Antes, “Baby God”, na HBO, documentou algo muito semelhante. A diferença para O Homem com Mil Filhos parece estar na dimensão.

Outras recomendações em jeito de Créditos Finais

Fancy Dance (Filme, Apple TV+). Protagonizado por Lily Gladstone, a atriz nomeada aos Óscares por “Assassinos da Lua das Flores”, o filme segue a história de uma mulher problemática chamada Jax (Gladstone), que fica responsável por Roki, a sobrinha de 13 anos, depois do desaparecimento da irmã. Jax adora Roki e quer o melhor para ela, mas a pobreza e os problemas sociais que se abatem na Reserva Powwow, em Oklahoma City, não ajudam em nada o percurso quer da adolescente, quer da tia, que sem o prever ou querer assume o papel de figura parental da jovem. “Fancy Dance” é um retrato familiar intimista que estreou no festival de Sundance no início do ano passado, antes de todo o alarido de “Assassinos da Lua das Flores” catapultar a atriz para as luzes da ribalta. Realizado por Erica Tremblay, uma cineasta conhecida pelos seus documentários (que, tal como Gladstone, tem descendência nativo-americana), “Fancy Dance” não nos traz só lembranças de “Wind River” de Taylor Sheridan nas partes mais tensas — é também uma espécie de sequela não oficial de “Assassinos da Lua das Flores”, uma vez que a ação decorre exatamente no mesmo sítio, mas com 100 anos de diferença (Gladstone explica o que têm em comum neste vídeo curtinho com menos de dois minutos).

Reservation Dogs (Série, Disney+). Para quem está órfão de coisas novas para bisbilhotar e nunca calhou de ver esta série, aproveitamos a boleia de “Fancy Fance” — Lily Gladstone aparece em dois episódios e Erica Tremblay realiza vários — para deixarmos aqui a nossa viva recomendação. Co-criada por Sterlin Harjo e Taika Waititi (na verdade, o neozelandês “empresta” mais o nome do que outra coisa qualquer), esta produção da FX acompanha em episódios de meia hora a vida de um pequeno grupo de adolescentes nativos americanos numa zona rural do Oklahoma que tenta superar o suicídio de um amigo. A série demora um bocadinho a arrancar, mas depois é só estar no sofá e testemunhar a qualidade subir num desenfreado crescendo. Mais complicado, porém, fica dizer com o que é parecida, uma vez que não conhecemos na televisão outras séries semelhantes. Mas podemos avançar, de forma segura, que é uma comédia hilariante com uma pungente surdina única e que assenta nas dores do crescimento e da transição para a vida adulta. Por alturas da estreia da terceira e última temporada no final do ano passado, o Público escrevia que chegou ao fim demasiado cedo. E, por aqui, tendemos a concordar.