São dos livros que mais vendem na indústria, provocam fenómenos virais nas redes sociais e são provavelmente um dos mais fortes formadores de leitores e leitoras pelo mundo fora. No entanto, à exceção das obras de autoras como Nora Ephron ou Meg Cabot, as comédias românticas (conhecidas como “romcoms”, de “romantic comedies”) são ao mesmo tempo vistas generalizadamente como literatura menor, no melhor dos cenários, frívola e fútil, no pior.

Bolu Babalola pretende combater esse estigma — aliás, já começou a fazê-lo com “Mel e Pimenta”, o seu romance de estreia que tanto foi premiado na edição inaugural do “TikTok Book Award”, como foi um êxito de crítica. Autodenominando-se como “romcomoisseur” — ou seja, especialista em comédias românticas —, a autora britânica não entende como é possível menorizar-se todo um género — algo que se estende dos livros para a televisão e o cinema, sendo que antes não era estranho ver comédias desta natureza a disputar prémios cinematográficos.

“Não sei o que aconteceu a dado momento, acho que foi misoginia, a sério. Porque é do género ‘oh, as mulheres adoram-nos, por isso devem ser mais fracos’”, conta ao SAPO24 em Lisboa, onde esteve durante a Feira do Livro para promover a tradução portuguesa de “Mel e Pimenta”, editada pela Porto Editora este ano.

De resto, a própria ideia da literatura romântica como género menor é discutível, afirma, quando temos em conta clássicos como “Orgulho e Preconceito” de Jane Austen. “À primeira vista, é apenas uma história romântica. Toda a gente o conhece como um livro de literatura romântica, mas quando o analisamos a fundo, diz tanto sobre a sociedade, sobre as mulheres, sobre expectativas, sobre preconceitos…”, defende. 

Bolu Babalola: “Não quero que a minha escrita seja uma reação contra estereótipos racistas. Só quero que seja sobre a verdade”
Bolu Babalola: “Não quero que a minha escrita seja uma reação contra estereótipos racistas. Só quero que seja sobre a verdade” Bolu Babalola

A sua premissa fundamental enquanto escritora é o amor, não só porque é um tema que lhe interessa, mas porque é absolutamente central na experiência humana. “Acho que diz muito sobre nós enquanto seres humanos, sobre as nossas vulnerabilidades, as nossas inseguranças, os nossos desejos, os nossos medos, todas essas coisas. Acho que podemos ver tanta coisa através da lente do amor e adorei isso, queria replicá-lo”, partilha.

Tal ficou particularmente aparente na sua obra de estreia, “Love in Colour” [sem tradução em Portugal], coleção de contos onde reescreveu mitos fundadores de várias culturas. “Quando fiz a minha pesquisa, apercebi-me de que na base de tantas histórias de criação — que não se chamam histórias de amor e sim histórias criacionistas ou mitos de fundação de como as comunidades e as sociedades surgiram —, havia sempre ou quase sempre uma história de amor na trama. Por isso, acho que isso molda a forma como pensamos enquanto humanos”, afirma.

Se “Love in Colour” até pode ocultar os seus objetivos como base nessa exploração histórica, “Mel & Pimenta” — que era para ser o seu primeiro lançamento mas foi adiado — é muito mais frontal na sua história. Acompanhamos Kiki Banjo, estudante universitária britânica e voz ativa da comunidade afro-caribenha da sua universidade, tendo um programa de rádio onde dá conselhos amorosos e alerta as colegas para não se deixarem levar pelas cantigas dos colegas, por mais irresistíveis que possam ser. Todavia, quando conhece Malakai Korede, é forçada a reconsiderar a forma como encara o sexo oposto.

A premissa não é particularmente original nem precisa de o ser — o que tem sido valorizado na escrita de Babalola é o humor da sua escrita, a energia dos diálogos e a forma como situa a história numa comunidade de alunos negros do Reino Unido. No entanto, se a escritora acha importante que haja cada vez mais representação de minorias na literatura, afasta a ideia de que pretende instrumentalizar a sua escrita para esse propósito. Pelo contrário, sendo uma mulher negra de origem nigeriana, cinge-se a escrever sobre a realidade que lhe toca de perto.

"O que quero escrever são pessoas negras a apaixonarem-se. Bem, na verdade, nem sequer é isso; quero escrever sobre pessoas apaixonadas que por acaso são negras — porque eu sou negra. É isso que eu sei, é isso que eu vivo. E não quero que a minha escrita seja uma reação contra estereótipos racistas. Só quero que seja uma escrita sobre a verdade". Mais à frente, questionada sobre o papel político dos artistas negros, defende que cada um é livre de apresentar criações mais ou menos politizadas, mas que tal não deve ser feito apenas como resposta às mudanças sociais: “O único dever que temos como criadores negros ou como autores negros é escrever a nossa verdade, escrever a experiência que queremos escrever. Porque, caso contrário, a nossa arte é mais uma reação do que a verdade — e penso que isso irá diminuir a autenticidade”.

"queria escrever uma personagem que fosse autêntica e também se sentisse confusa. A Kiki está longe de ser perfeita. Especialmente no caso das mulheres negras, sinto que por vezes tentamos corrigir em excesso os estereótipos, escrevendo personagens demasiado perfeitas."

“Honey and Spice” é assumidamente uma comédia romântica clássica, mesmo que brinque com algumas das suas características e as subverta. Qual foi o teu objetivo com este livro?

O meu objetivo foi apenas escrever o tipo de romance que gosto de ler. Gosto de livros românticos interessantes, divertidos, em que nos apaixonamos pela história e pelas personagens, tanto quanto elas se apaixonam uma pela outra. E gosto de histórias que têm várias camadas e são multifacetadas, ou seja, não são apenas sobre duas pessoas que se apaixonam, são sobre alguém que se descobre a si próprio, que aprende, que cresce. É o tipo de histórias que me atrai e que gosto de escrever.

Li que a tua abordagem às histórias começa por conceber o tipo de personagem feminina que queres e planear a partir daí. Podes explicar um pouco como funciona este processo?

Acho que adoro escrever histórias baseadas em personagens. Não sei para onde vai uma história a não ser que saiba quem é a minha personagem, quais são os seus desejos, o que a vai desafiar ou fazer crescer. E depois a história nasce daí. Posso ter um enredo vago, mas, para mim, o motor é o que a personagem quer. Eu escrevo romance, por isso não é só a forma como o interesse amoroso a vai cortejar — a luxúria e as partes divertidas e de sedução —, mas também a forma como se desafiam um ao outro para crescerem, como chamam a atenção um do outro para os seus erros. Isso é muito interessante para mim, é o que torna uma história cativante de ler.

Quando lemos “Mel & Pimenta”, Kiki começa por ser uma personagem “introvertida, mas nem por isso”. Parece partir da sua própria vontade ser introvertida, mas depois vemo-la crescer e adaptar-se um pouco mais ao ambiente que a rodeia. É esse o tipo de crescimento pessoal de que falavas, esta forma de interagir com a comunidade?

Sim, trata-se da forma como ela se apaixona por si própria, como se apaixona e se abre à sua comunidade. Acho que, no início, ela está a proteger-se da dor e da vulnerabilidade. Mas a questão é que não se cria realmente comunidade sem se abrir para ser compreendido. Tal como com Malakai, ela está a aprender a abrir-se e a ser compreendida por ele. Ao mesmo tempo, está a abrir-se à comunidade e ao próprio crescimento. E adorei escrever essa viagem, sobre como o amor não é apenas para com outra pessoa, mas também pode ser sobre nós próprios.

Quanto a essa ideia que mencionaste sobre abertura, tendo a pensar que é impossível acabarmos os nossos dias sem magoarmo-nos ou magoarmos outra pessoa, porque isso faz parte do processo de ser humano. A nossa natureza gregária, assim como a interação que temos com outras pessoas, são factos inevitáveis da vida.

Exatamente, exatamente. E penso que queria escrever uma personagem que fosse autêntica e também se sentisse confusa. A Kiki está longe de ser perfeita. Especialmente no caso das mulheres negras, sinto que por vezes tentamos corrigir em excesso os estereótipos, escrevendo personagens demasiado perfeitas. E eu queria escrever uma protagonista que fosse real. Para mim, a glória de Kiki não está no facto de ser uma personagem impecável, mas sim de ser alguém que comete erros, mas que, em última análise, continua a ser uma boa pessoa e procura retificar esses erros, abrindo-se ao crescimento. E ela é confiante, mas não deixa que essa confiança lhe suba à cabeça, sabes? Ela abre-se à vulnerabilidade e isso, penso eu, é fundamental.

"O facto é que tudo o que crio é movido a amor — não só verdadeiramente como conceito, mas também como aquilo que me atrai."

Alguns escritores são frontais quanto à ideia de que apenas querem contar uma história e que tudo o resto que surja no livro vem por arrasto. Outros assumem que há determinados temas que querem abordar e que isso é tão importante como a narrativa. Qual é a tua posição nesta matéria?

Eu só escrevo uma história que seja verdadeira, que me toque no coração. Nunca penso a priori, por exemplo, “quero abordar este tema, quero resolver o racismo” (risos). Quero escrever sobre a vida real, as coisas que conheço e que experiencio intimamente. E conheço pessoas na minha comunidade que lidam com isso diariamente, mas não quero escrever uma história sobre racismo. Quero escrever uma história sobre a vida. Na vida, apaixonamo-nos, interagimos com coisas mais sombrias, somos confrontados com preconceitos, lidamos com ruturas de amizade ou homens que são tóxicos. Mas também há alegria nisso. E acho que queria escrever uma história que englobasse isso — pode escrever-se sobre alegria e sobre coisas mais sombrias, mas a escuridão não tem de eclipsar a alegria.

Há uma citação de uma crítica a “Mel & Pimenta” onde se lê: “Se não fosse escritora, Bolu Babalola poderia ser uma grande antropóloga cultural”. Uma das características do livro é que está repleto de meditações de Kiki sobre sexismo e racismo, sobre namorar nos tempos que correm, etc... De certa maneira, as suas reflexões quase que podem funcionar como uma espécie de veículo para os teus próprios pontos de vista. Quanto disso é a sua própria perspetiva colocada no livro e quanto é escrita de personagens?

Penso que é um equilíbrio de ambos. Uma das minhas autoras favoritas é Toni Morrison e, com ela, as personagens fazem a sua própria cena. Ela não é exatamente as suas personagens, mas, através da história, vemos como ela encara a vida dos negros americanos, a vida americana e a sociedade em geral. E acho que [comigo] é uma coisa semelhante, em que tento escrever histórias que dizem alguma coisa, mas não é porque esteja a tentar ensinar, é apenas porque é assim que vejo o mundo. Adoro histórias que têm uma perspetiva forte. E não é que se leve as personagens a fazer o que se quer que façam, é mais que a própria história diga alguma coisa. Um dos meus livros preferidos é “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen, que, à primeira vista, é apenas uma história romântica. Toda a gente o conhece como um livro de literatura romântica, mas quando o analisamos a fundo, diz tanto sobre a sociedade, sobre as mulheres, sobre expectativas, sobre preconceitos...

sobre papéis de género.

Papéis de género, exatamente. Adoro ficção que entretém, mas que também nos informa sobre o mundo em que vivemos.

Descreve-te como uma “Romcomoisseur” [“Romcom connoisseur”]. Muitas pessoas gostam de comédias românticas, mas tu deste um passo em frente e tornaste-as uma parte muito importante da tua vida. Como é que isso aconteceu?

Eu simplesmente adoro-as! O facto é que tudo o que crio é movido a amor — não só verdadeiramente como conceito, mas também como aquilo que me atrai. Eu era uma leitora voraz quando era mais nova, lia tudo, mas as coisas a que voltei e as coisas de que gostei e me deram alegria são examinações sobre o amor. Porque acho que diz muito sobre nós enquanto seres humanos, sobre as nossas vulnerabilidades, as nossas inseguranças, os nossos desejos, os nossos medos, todas essas coisas. Acho que podemos ver tanta coisa através da lente do amor e adorei isso, queria replicá-lo. E também acho que as comédias românticas, à superfície, nos dão esperança e o que gosto é que podemos mergulhar nelas. Porque o mundo está tão cheio de desânimo, desespero e escuridão, acho que o que as comédias românticas fazem é lembrar-nos que há alegria e esperança também. E acho que é isso que espero infundir na minha escrita.

"Quero escrever histórias de amor em que a protagonista feminina opte por um romance que a sirva, em vez de optar por um romance só porque sim"

É um pouco disparatado pensar no “amor” como um tema vácuo ou sem interesse, porque é um arquétipo central das narrativas desde o início da humanidade. Li numa entrevista que até elogias o seu poder político. Podes explicar um pouco porquê?

Penso que a ausência de amor ou a incompreensão do que é o amor está no centro de tantos conflitos no mundo. E penso que podemos analisar o amor de uma forma muito antropológica, porque é ele que dita a forma como interagimos com o mundo. E também há pessoas que agem de uma forma que resulta da privação de amor. Por isso, acho que, no fundo, descreve muito de nós enquanto seres humanos. Escrevi “Love in Color”, que explora histórias mitológicas de todo o mundo. E quando fiz a minha pesquisa, apercebi-me de que na base de tantas histórias de criação — que não se chamam histórias de amor e sim histórias criacionistas ou mitos de fundação de como as comunidades e as sociedades surgiram —, havia sempre ou quase sempre uma história de amor na trama. Por isso, acho que isso molda a forma como pensamos enquanto humanos.

Bolu Babalola
Bolu Babalola Bolu Babalola créditos: Caleb Azumah Nelson

E, de uma forma quase bizarra, podemos provavelmente imaginar as lutas religiosas como um amor excessivamente zeloso pela divindade que cada um adora?

Exatamente, e poder! (risos)

Em relação ao primeiro livro, “Love in Color”, penso que muitas pessoas olhariam para ele e não vê-lo-iam propriamente como uma coleção de contos românticos. Quero dizer, seria mais fácil encará-lo como uma exploração da forma como os mitos moldam ou alimentam os nossos pontos de vista sobre raça e sobre género.

Não é o meu objetivo, mas gosto de escrever histórias de amor que confundem os cínicos! (risos) Eles não sabem o que fazer com isso. Escrevi “Love in Color” como um livro romântico, mas a forma como vejo o romance é que ele engloba política, género, todas essas coisas na sociedade. E acho que só queria que as pessoas soubessem que o romance pode fazer tudo isso. É um género que, a meu ver, tem um poder infinito.

Também li o teu conto, “Netflix and Chill”, e sinto que foi uma espécie de esboço para o que viria a ser “Honey and Spice”. 

Sim, completamente.

E escreveste também um ensaio para a “Elle Magazine” onde descreves a experiência de um desgosto amoroso, e opões-te à ideia de um romântico incorrigível como alguém juvenil, com expectativas impossíveis. No conto e no livro, ambas as protagonistas são pessoas que cortaram o amor das suas vidas até ao momento em que deixam que ele regresse. Parece-me que algo que impulsiona a tua escrita é esta ideia de nunca ser tarde demais para nos expormos e abraçarmos a vulnerabilidade.

Sim, e acho que quando aprofundamos quanto a essas personagens, vemos que, na verdade, elas amam o amor! Kiki dá conselhos românticos à população feminina da sua universidade. Em “Netflix and Chill”, Temi ama o amor, mas não quer perder tempo enquanto não valer a pena. E penso que se trata de escolher quando é que o amor é adequado para nós. Quero escrever histórias de amor em que a protagonista feminina opte por um romance que a sirva, em vez de optar por um romance só porque sim. E também superar o medo do romance, porque é muito, muito assustador. E quero escrever sobre como o risco pode, por vezes, valer a pena.

E é sempre complicado, não é? Porque nunca acontece quando se está à espera.

Nunca, nunca acontece. No entanto, aprendemos coisas sobre nós próprios quando isso acontece. Os nossos defeitos, os nossos medos, as nossas vulnerabilidades, por vezes não são ativados até conhecermos alguém que os desafia e nos faz interrogar quem somos até ao nosso âmago. Adoro explorar isso, acho que diz muito sobre nós.

"Tenho tido muita sorte em ter boas críticas e elas significam muito para mim. Mas também, como autora, sei do que fui excluída"

As comédias românticas são tão populares como, por vezes, menosprezadas e acusadas de serem superficiais ou cliché. Até que ponto é que isto é verdade — e até que ponto é que as pessoas as interpretam mal?

Acho que as pessoas as entendem de forma completamente errada. E também acho que isso é uma espécie de mentira. Quando olhamos para algumas das melhores histórias, como “Um Amor Inevitável”... Veja-se como “Viram-se Gregos para Casar” foi nomeado para um Óscar! Houve uma altura em que eram dos maiores filmes do mundo! E não sei o que aconteceu a dado momento, acho que foi misoginia, a sério. Porque é do género “oh, as mulheres adoram-nos, por isso devem ser mais fracos”. Acho que muito disso está errado. E acho que também não compreendem o fôlego do romance enquanto género, porque é muito, muito vasto, engloba tanta coisa. E, como em todos os géneros, há diferentes níveis de escrita e diferentes níveis de exploração do tema. E há alguns livros românticos que são divertidos de ler, são apenas duas pessoas a apaixonarem-se e isso é o cerne da questão. E depois há algumas histórias que tratam duas personagens que se apaixonam e a sociedade que as rodeia, como interagem com o mundo e crescem como pessoas. Ambas são válidas, mas existem dentro do mesmo género. Por isso, acho que as pessoas não compreendem que há todo um universo.

Acompanhando essa ideia, existe o conceito de que os livros que não concorrem a grandes prémios ou que não pretendem ser o próximo grande romance contemporâneo são frívolos ou menores. No entanto, “Mel & Pimenta” não só foi muito elogiado pelos leitores, como também pela crítica. Sendo que também és uma jornalista e escritora de cultura, achas que tem havido uma mudança na forma como a literatura romântica é vista hoje em dia?

Espero que sim. É difícil para mim dizer, porque estou no meio. Tenho tido muita sorte em ter boas críticas e elas significam muito para mim. Mas também, como autora, sei do que fui excluída, sabes? Por isso, penso que se trata de um pequeno progresso, mas vejo que, a nível institucional, ainda temos alguns caminhos a percorrer. E é por isso que o “TikTok Book Award” significou muito para mim, porque veio diretamente dos leitores, diz o que os leitores querem e do que gostam. Por isso, penso que há algum trabalho a fazer em torno do estigma em torno dos romances de natureza romântica.

Como mencionaste, podemos incluir o BookTok e o Bookstagram na conversa, porque também tiraram algum poder às instituições literárias. De repente, temos estes grandes influencers literários que não são vistos apenas como caras bonitas, mas como leitores a sério que partilham e promovem livros que, de outra forma, seriam excluídos da atenção dos principais meios de comunicação social. Em que medida é que achas que isto contribuiu para essa mudança?

Contribuiu uma parte enorme, enorme. Penso que as pessoas estão a aperceber-se do poder dos influencers e agora as instituições são obrigadas a olhar para elas, devido ao seu grande volume e à sua voz. E penso que, além disso, as pessoas gostam de ganhar dinheiro e apercebem-se de que “precisamos de entrar neste mercado para gerar lucro”. Por isso, penso que está realmente a ajudar a mudar a paisagem. E as pessoas respondem de facto ao boca-a-boca. Querem algo que seja recomendado. E penso que o TikTok abriu esse tipo de mundo de recomendações a um público totalmente novo.

"nunca perguntariam “porque é que Charles Dickens só escreveu sobre pessoas brancas vitorianas?”. Percebes o que quero dizer? Nunca fariam isso"

Outra caraterística fundamental de “Mel & Pimenta” é o facto de ser uma celebração da negritude. Mencionaste noutras entrevistas e no início da nossa conversa que, enquanto cresceste, havia muito pouca representação negra na literatura. Em que medida é que isso influencia a tua escrita?

É estranho, porque não estou a pensar nisso quando estou a escrever. O que quero escrever são pessoas negras a apaixonarem-se. Bem, na verdade, nem sequer é isso; quero escrever sobre pessoas apaixonadas que por acaso são negras — porque eu sou negra. É isso que eu sei, é isso que eu vivo. E não quero que a minha escrita seja uma reação contra estereótipos racistas. Só quero que seja uma escrita sobre a verdade. Por isso, para mim, não é algo que esteja na vanguarda da minha mente. Sei que é a forma como é interpretada pelo mundo, é isso que é, mas, para mim, estou apenas a contar a história que quero escrever. Acho que foi a Toni Morrison que disse que escreve histórias que quer ver no mundo. Portanto, é isso que eu estou a fazer.

Recordo-me de uma citação de Toni Morrison que mencionaste em conversa à Interview Magazine, “onde eu já estou é o mainstream”. 

Sim, porque eu sou o centro do meu mundo. Nós somos o centro do mundo que eu conheço, por isso nunca escreveria como marginalizada. E é a mesma razão pela qual, quando escrevo uma palavra iorubá — que é a língua da minha cultura, sou nigeriana — não a vou pôr em itálico. Porque, para mim, isso seria exotizar o que é normal para mim, ou seja, estar a fazer de mim um outro.

Bolu Babalola
Bolu Babalola créditos: Caleb Azumah Nelson

Existe a ideia de que os criadores e os artistas negros são inerentemente políticos — mesmo que alguns não se foquem em ideias políticas — devido ao espaço que criam para si próprios. O que pensas sobre isso?

Acho que é esse o caso e que podemos escolher interagir com essa politização ou não. Acredito nisso. É assim que o mundo é, vamos ser sempre sujeitos políticos. Mas penso que não temos de fazê-lo, não temos de reagir a essa politização porque sentimos que é o nosso dever. O único dever que temos como criadores negros ou como autores negros é escrever a nossa verdade, escrever a experiência que queremos escrever. Porque, caso contrário, a nossa arte é mais uma reação do que a verdade — e penso que isso irá diminuir a autenticidade.

De certa forma, ceder a isso priva-te do teu poder, certo? Porque não o estás a fazer por ti própria, estás a fazê-lo por causa dos outros.

Exatamente. E a arte, no final de contas, precisa de ser sobre liberdade a todos os níveis.

Mencionaste previamente que a tua escrita não é uma tentativa de ser atual e “woke”, que nunca te ocorreu “escrever uma personagem que não fosse negra ou nigeriana ou de pele escura”, porque é isso o que és. Ao mesmo tempo, fazendo um pouco o papel de advogado do Diabo, poder-se-ia dizer — injustamente — que podes estar a encurralar-te num nicho. Como é que se navega entre estas duas esferas?

Bem, eu diria que nunca ninguém diz aos autores brancos que estão a servir um nicho. Acho que a negritude, para mim, é um universo. A negritude, para mim, não é uma experiência particular. É uma cultura e, nessa cultura, a vida acontece. Não há forma de olhar para essa questão sem ser racista. Porque, para mim, há liberdade em escrever tantas experiências vividas, tantas vidas. E eu sou negra porque a vida acontece aos negros. Por isso, se quisermos dizer que isso é um nicho, sinto que as pessoas estarão a dizer que só há uma experiência para nós — e é uma experiência muito específica.

Uma experiência branca, basicamente.

Uma experiência muito branca. E nunca perguntariam “porque é que Charles Dickens só escreveu sobre pessoas brancas vitorianas?”. Percebes o que quero dizer? Nunca fariam isso.

A par disso, muitas vezes as representações da cultura negra são tidas como ocidentalizadas — ou porque se deve à forma como a cultura e os costumes evoluíram nalgumas comunidades, ou porque se destinam também a um público branco. Mas “Mel & Pimenta”, pelo contrário, tem um enfoque muito claro na manutenção do legado africano da população negra de Londres — tem os seus acenos à herança e à utilização de palavras iorubás. Este livro foi também uma forma de lutar contra uma espécie de apagamento de África?

Mais uma vez, não. Estava a escrever o que sei. Acho que as pessoas escrevem sobre aquilo que conhecem. Por isso, mesmo os autores negros que querem escrever a sua experiência específica muito ocidental, nunca vou negar isso, porque é isso que querem escrever. O que eu queria escrever era um mundo que conheço intimamente, e acho que esses são os melhores livros. Como Jane Austen escreveu muitas e muitas vezes sobre o mundo que conhecia intimamente, mas eu adoro ler todos esses livros, sabes? E acho que é isso que queria refletir. Sinto-me muito, muito nigeriana, mas também sou muito britânica. E a forma como falamos, a melodia, a língua, está tudo ali, porque isso é real para mim. Por isso, estou muito grata por poder preservar isso. Penso que o poder da linguagem e da narração de histórias é a preservação da cultura. E acho que, inatamente, como escritora, é isso que estou a fazer. Mas não estou a pensar nisso, só estou a pensar em registá-lo.

"Acho que seja em que parte for, namorar é uma questão realmente de intencionalidade. Neste momento, temos de ser mais intencionais em relação a interações humanas reais"

Sei que recebeste ótimas reações quanto ao livro aqui em Lisboa. Qual é o papel da representação nesse processo?

Quero dizer, é algo muito gratificante. Penso que a diáspora negra a nível mundial tem sido muito acolhedora para mim. Isso deixa-me muito, muito emocionada. Na Nigéria, na África do Sul, no Brasil... Recebo mensagens de todo o lado a dizer como se sentem representados pela Kiki. Dá-me arrepios. E, de certa forma, fico feliz e triste ao mesmo tempo, porque somos tão poucos que as pessoas sentem-se do estilo “nunca me vi refletida desta forma”. E espero que, nos próximos anos, sejamos tantos que isso deixe de ser uma coisa. Mas também considero-o uma grande honra e sinto-me muito, muito humilde com essa reação. E apenas por dizer a nossa verdade. Por isso, é muito importante para mim.

Parece ser o englobamento perfeito do teu projeto de escrita: tu a mostrares o seu mundo e as pessoas a chegarem a ele.

Completamente. E, sabes, não são só os negros. Pessoas de todo o mundo têm reagido a “Mel & Pimenta”. E acho que isso fala da universalidade do amor. Por exemplo, quando eu estava a crescer, não havia muitos livros de negros a escrever sobre pessoas negras que se apaixonavam. Mas quando lia os livros de autores brancos, não me sentia como “oh, não estou a sentir este romance. Não estou a sentir arrepios porque eles não são negros. Não se parecem comigo”. Continuei a ler a história porque as personagens eram boas. E acho que isso explica a universalidade de uma boa narrativa, de que é realmente para toda a gente.

E penso que, no teu caso, isso é especialmente notório na espécie de quase esgrima que crias nos diálogos e nas interacções entre Kiki e Malakai. Para ti é importante criar esta ideia de jogo?

Adoro escrever isso. Adoro escrever diálogos. É muito divertido. E isso vem do facto de eu conhecer intimamente as minhas personagens. Preciso de saber quem são as minhas personagens, como é a sua personalidade. E escrevo tantas conversas com elas que nem sequer acabam na história, só para eu sentir os seus tons e as suas sensações. E quero que seja lúdico, quero que seja divertido, quero que pareça música e poesia. Porque, para mim, muita linguagem negra tem essa sensação. Mas, muito especificamente quanto ao meu caráter, sinto que é aí que reside o romance e a diversão.

Hoje em dia, quando se fala de romance moderno, persiste esta a ideia cómica de que toda a gente que é casada ou que já está comprometida “safou-se” porque as coisas estão muito complicadas e sombrias neste momento — especialmente quando se toma em consideração a questão das apps de encontros. Queria saber a tua opinião sobre isso, porque, afinal de contas, este é um livro muito sobre encontros e desencontros.

Acho que seja em que parte for, namorar é uma questão realmente de intencionalidade. Neste momento, temos de ser mais intencionais em relação a interações humanas reais. Eu nunca, mas nunca, fui uma rapariga de apps. Agora tenho um parceiro, mas não o conheci através de apps, conheci-o na vida real, e isso foi muito deliberado da minha parte. Apercebi-me que toda a gente estava nas apps e eu tentei também, mas pensei “não é para mim”. Por isso, o que eu digo às pessoas é que devem interrogar-se sobre o que lhes diz respeito enquanto indivíduos, porque, para mim, o romance é, em última análise, uma das coisas mais pessoais do mundo, precisa de mexer contigo. É sobre o que nos faz vibrar e como gostamos de nos relacionar com as pessoas. Não critico as apps, penso que são adequadas para alguns, mas as pessoas precisam de questionar se são adequadas para elas. E também, falando de intencionalidade, penso que as redes sociais podem, por vezes, limitar as ligações. Tipo, ok, estás a enviar-me um emoji de fogo, mas estás a fazer mais alguma coisa? Estás a querer iniciar uma conversa a sério? Não basta gostar de um post sempre que eu publico alguma coisa e achar que isso significa que gostas de mim. É preciso fazer algo mais. Por isso, penso que as redes sociais também são boas para fomentar a ligação inicial, mas é preciso fazer algo mais para a fundamentar. 

"hoje o Twitter também se assemelha mais a uma performance e as pessoas fazem-no para obter engajamento e para se tornarem virais, o que cria uma camada de artifício. Isso deixa-me triste, francamente. Até a forma como interajo no Twitter neste momento é diferente. Porque as pessoas gostam de ser combativas só para se envolverem ou para suscitar um debate sem motivo"

No entanto, criaste uma legião de seguidores no X [ex-Twitter].

Devo ressalvar que o Twitter é diferente.

Porque é mais um reflexo da nossa própria personalidade?

Exatamente. Conheci alguns dos meus melhores amigos do mundo no Twitter porque acho que, mais uma vez, as pessoas são mais autênticas aí. É possível conhecer melhor a pessoa como um todo e é menos uma performance. Porque acho que, nas apps de encontros, esse é o único objetivo.

É tão divertido como desanimador falar do Twitter e da forma como fomentou essas relações antes de se tornar no lodo que é hoje. Também queria saber a tua opinião sobre o assunto, porque aquilo em que se transformou parece ter-se tornado definitivamente mais hostil para os criadores e artistas negros.

É 100% mais hostil. Claro que recebo muitos comentários racistas, mas ignoro, isso é “normal”. Para mim, o mais triste é a perda da comunidade. Porque quando comecei no Twitter, era apenas uma jovem rapariga a tentar fazer ouvir a minha voz e conheci alguns dos meus melhores amigos. Consegui criar uma rede não só de escritoras, mas de mulheres negras criadoras a nível mundial, que são minhas amigas até hoje e que agora são editoras e produtoras, seja o que for. Na altura, éramos estagiárias de 21 anos e conseguimos criar uma verdadeira ligação e comunicação. Mais uma vez, isto remete para a ideia de que, sim, estávamos a estabelecer uma ligação, mas substanciámo-la com conversas reais. Penso que hoje o Twitter também se assemelha mais a uma performance e as pessoas fazem-no para obter engajamento e para se tornarem virais, o que cria uma camada de artifício. Isso deixa-me triste, francamente. Até a forma como interajo no Twitter neste momento é diferente. Porque as pessoas gostam de ser combativas só para se envolverem ou para suscitar um debate sem motivo.

De certa forma, é uma encapsulação perfeita do que o mundo é neste momento, porque sempre que olhamos para ele, notamos que o progresso mais ou menos marginal nalguns aspectos pode ser derrubado e vemos como as coisas também podem regredir facilmente.

Completamente. É muito triste. Mas devo dizer que, devido à forma como fiz crescer a minha plataforma no Twitter, apenas por ser eu própria, a minha comunidade, as pessoas que me seguem, em geral, são muito boas. São muito bem-dispostas. Gosto de falar de televisão e de coisas de que estou a gostar de descobrir. Sou muito rigorosa a falar apenas de coisas de que gosto e, se o fizermos, temos tendência a atrair um público que pensa da mesma maneira. Por isso, acho que ainda há esperança se fores muito intencional na forma como o usas.

Falando especificamente sobre o Reino Unido e sobre a forma como podemos assistir ao progresso e ao retrocesso ao mesmo tempo, vimos como a extrema-direita fez comentários racistas sobre o ex-primeiro-ministro Rishi Sunak devido às suas origens sul-asiáticas, apesar de ele próprio ser um conservador. Como analisas a situação no teu país?

Sinceramente, a situação é muito má, de ambos os lados. Há muito que as coisas não estavam tão más para as pessoas marginalizadas em Inglaterra. Isso deixa-me triste. Mas não é apenas um problema do Reino Unido, é global. Tenho-o visto em todo o lado. E acho que só precisamos de tentar fazer o que pudermos nos nossos próprios espaços para conseguirmos mudar as coisas com o pouco poder que temos.

Sei que estás a pensar continuar a história de Kiki e Malakai. Para onde caminha a tua escrita?

Bem, também sou argumentista, por isso estou a adaptar coisas. Não posso entrar em pormenores, mas também estou a trabalhar para o ecrã. Vou sempre escrever sobre romance, mas acho que vai ter sabores diferentes, roupagens diferentes, temas diferentes. O meu quarto livro — ou seja, o que virá a seguir à sequela [de “Mel & Pimenta] — penso que vai ser um desvio. Acho que pode ser mais fantasia, definitivamente mais adulto. Mas sim, acho que vou sempre escrever literatura de romance, acho que é um género muito flexível e que se enquadra em tantos sítios diferentes. Só quero explorar os diferentes sítios onde me pode levar.