A viagem até à localidade classificada como “Aldeia de Portugal” tem a paisagem mais desoladora entre os vários cenários negros que agora pontuam o referido município do distrito de Aveiro e da Área Metropolitana do Porto: são quilómetros de mata ardida, negra e seca, de um lado e do outro da estrada.

Quando se chega à aldeia, alguns moradores varrem a cinza acumulada ao pé da porta, mas Leonor e Benvinda Ferreira sobem para o trator com um pequeno bidão de água e rumam em marcha lenta até ao seu monte, para apagar pequenos reacendimentos que a filha identificou ao longe.

“Estamos desde segunda-feira sem água. Hoje apareceu um bocadinho e consolei-me a lavar a louça, mas não temos mais do que esta”, diz Benvinda. “A que tenho tirei de uma corga, que é uma biquinha só, mas não temos para mais nada, nem para a gente se lavar”, acrescenta.

Ao olhar em volta, para uma floresta tão jovem e já morta, Leonel quer ajudar no relato da esposa, mas custa-lhe falar. “Comprei este terreno para ter um campo para a lenha, porque não ma deixam ter em casa por causa do risco de incêndio, e afinal mais valia ter ficado com o dinheiro na mão. Não sei como é que o povo se vai governar com os montes todos queimados”, desabafa.

O casal já passou por outras situações idênticas, mas foi neste incêndio que acumulou mais mágoas. Uma delas é a sensação de abandono: “Não esteve aqui um único bombeiro de Oliveira de Azeméis, nem o presidente da câmara. Não houve uma palavra de conforto! Estivemos sozinhos, sozinhos!”.

A outra é a desconfiança: “Havia explosivos no meio do monte. Não há outra explicação. Sempre houve aqui grandes incêndios – eram apagados quase só pelo povo e, quando os bombeiros chegavam, já faziam apenas o rescaldo – mas desta vez não foi assim e, para mim, estava alguma coisa dentro do monte. Não acredito que uma fagulha que caia no chão faça logo lume da altura de uma pessoa! Aquilo parecia bombas a estourar – era uma coisa impressionante, como bombas de Carnaval – e foi em todo o lado ao mesmo tempo”.

Concentrada no regador azul com que verte o mínimo possível de água sobre as colunas de fumo que se elevam do chão, Benvinda concorda com o marido. Entre um tronco seco e o outro, defende que alguém terá sido pago para fazer arder os montes e dar lucro aos madeireiros, “porque eles compram as árvores queimadas ao preço que querem”, o mais baixo possível, e, depois de limparem os troncos com maquinaria própria, “vendem essa madeira ao mesmo preço da nova”.

Leonel fala com constrangimento, sabe que não tem provas, mas isso não lhe evita as suspeitas, alimentadas pela memória de que “andaram drones a sobrevoar a zona à noite, antes dos incêndios”, e aumentadas pela teoria de que os engenhos explosivo mais modernos “até podem ser acionados por telemóvel”.

O certo, diz Benvinda, é que agora “vão-se passar anos” até o monte voltar a dar-lhes sustento. Salva e em segurança, ela até poderia animar-se ao ver ultrapassados os piores momentos, mas, por enquanto, não há conversa alguma que lhe consiga arrancar um sorriso ou um mero comentário de esperança.

Antes de voltar ao silêncio, explica porquê: “Não faz ideia do que eu já gritei! Se no domingo a gente não fugia a tempo quando viu o primeiro lume, nem tínhamos tempo de chegar à carrinha para sair do monte. Mas, agora, com isto assim, o que é que a gente faz? Já viu como isto está? Foi-se tudo. De Nespereira para cá, não há um único ramo verde”.

Desde domingo, já sete pessoas morreram – duas das quais por doença súbita – nos incêndios que deflagraram sobretudo nas regiões Norte e Centro do país, em concreto nos distritos de Aveiro, Porto, Vila Real, Braga, Viseu e Coimbra. Houve ainda 161 feridos e dezenas de casas destruídas.

 Segundo o sistema europeu de observação terrestre Copernicus, a área ardida em Portugal continental, durante o mesmo período, ultrapassa agora os 121 mil hectares. Desses, mais de 100 mil situam-se nas regiões Norte e Centro, que assim concentram 83% do território queimado a nível nacional.

Alexandra Couto, agência Lusa