A Ucrânia, dotada de solos férteis e de um vasto setor agrícola, era, antes da guerra, a maior abastecedora global de óleo de girassol e uma das cinco maiores de milho, trigo e cevada – com a larga maioria do trigo ucraniano a ir, entre 2016 e 2021, para países asiáticos e africanos. O ataque de Moscovo à Ucrânia veio, porém, constranger o fluxo dos alimentos ucranianos para o mundo e agravar, de tal forma, a ameaça da insegurança alimentar e da fome na esfera internacional. Adicionalmente, a guerra tem infligido graves danos à agricultura ucraniana e à Ucrânia em si, assim comprometendo as próprias capacidades de produção agroalimentar de um dos maiores celeiros do mundo – capacidades essas que deveriam ser respeitadas mesmo durante uma guerra, pela sua importância para o abastecimento alimentar global.

Desde o início da invasão, em fevereiro de 2022, vastas extensões de território agrícola foram ocupadas ou transformadas em zonas de combate, e houve a contaminação pervasiva de solos rurais com minas terrestres e outros explosivos, ou ainda com poluentes tóxicos. Muitos animais de quinta foram mortos e houve a pilhagem em larga escala de bens, tal como a destruição ou danificação de inúmeras maquinarias e equipamentos agrícolas e ainda danos disseminados a culturas e a instalações agrárias. A produção de alimentos foi fortemente impactada e o setor agroalimentar viu-se a braços com enormes danos e perdas que são agravados a cada dia que passa. Toda esta destruição magoa gravemente a Ucrânia e vulnerabiliza um mundo cuja segurança alimentar depende da agricultura ucraniana.

Depois, há as dificuldades e os constrangimentos que a invasão tem imposto às exportações alimentares ucranianas em si. Antes da guerra, mais de 90% dessas exportações eram feitas pelos portos da Ucrânia no Mar Negro. Porém, vários portos foram ocupados pela Rússia, outros deixaram de ser utilizáveis para as exportações pela proximidade relativa de posições controladas pelas forças russas e, mesmo os portos que continuam ativos, na região de Odessa, têm sido repetidamente atacados. Para além disso, a segurança das rotas, da navegação e das travessias marítimas de bens agroalimentares passou a ser incerta e precária. O Mar Negro foi fortemente contaminado com minas marítimas e o tráfego mercante de cargueiros e de cereais tem sido, até aqui, condicionado e constrangido pela ameaça militar que é representada pela Rússia e pelo bloqueio naval não-declarado que a frota russa e as suas atividades no Mar Negro impuseram aos portos ucranianos logo no início da guerra.

Nos primeiros meses da invasão, esse bloqueio impediu até as exportações marítimas de alimentos ucranianos, o que contribuiu substancialmente para a inflação acentuada dos preços globais dos alimentos e para a exacerbação do espectro da fome ao longo do planeta. A situação alimentar global foi, depois, aliviada durante a Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, que foi criada em julho de 2022 por mediação da ONU e da Turquia e que garantiu, no decurso dos meses seguintes, a atenuação do bloqueio russo e a retoma parcial das exportações marítimas ucranianas. A Iniciativa permitiu, assim, a exportação de 32.9 milhões de toneladas métricas de alimentos ucranianos, com a reconexão da produção ucraniana às cadeias de abastecimento a aumentar, a disponibilidade global de alimentos e a contribuiu ainda para a estabilização dos preços globais dos bens alimentares. Não obstante, a Rússia inviabilizou a Iniciativa em julho de 2023, após o que se lançou em agravos à navegação comercial e numa persistente e ainda hoje prevalente campanha de ataques aéreos aos portos ucranianos no Mar Negro e no Danúbio – já tendo, desde então, e de acordo com Kyiv, infligido graves danos à infraestrutura portuária, atingido vários navios civis e destruído muitos alimentos para exportação. 

A Ucrânia, porém, não desistiu, e conseguiu, algum tempo após o fim da Iniciativa, superiorizar-se ao bloqueio russo e dar continuidade às exportações pelos seus portos, através dos ataques com mísseis e drones pelos quais continua, até aqui, a aplicar pesados danos às forças russas no Mar Negro e na Crimeia ocupada. Assim, e ainda que a navegação, os portos e o espaço aéreo permaneçam vulneráveis a atos de guerra, tais feitos permitiram à Ucrânia criar e suster um corredor humanitário por águas ucranianas e por espaço NATO, pelo qual já exportou, segundo o governo ucraniano, 42 milhões de toneladas de alimentos.

A Ucrânia tem, desta forma, e mesmo que a braços com os impactos de uma agressão de larga escala, conseguido garantir um relevante afluxo marítimo de alimentos para os mercados, no que tem dado um importante contributo para o abastecimento alimentar global – mesmo que à exportação de bens alimentares pelo Mar Negro se deva somar uma dramática expansão das exportações fluviais e terrestres de 2022 em diante.

A Ucrânia tem providenciado exportações comerciais, mas também ajuda alimentar. Com efeito — e ainda que face a uma invasão, à devastação de quintas e searas, e à desestabilização do comércio no Mar Negro —, a Ucrânia tem estado a ajudar ativamente países afetados por desnutrição e fome, em especial em África. Tem estado a fazê-lo através da sua própria iniciativa humanitária, “Grain from Ukraine”, sob a égide da qual Kyiv e outros doadores já enviaram, desde finais de 2022, mais de 220 mil toneladas de alimentos ucranianos para Etiópia, Somália, Nigéria, Djibouti, Sudão, Moçambique e Quénia, entre vários outros. Esta iniciativa é, a par das próprias exportações comerciais, instrumental para garantir o estável abastecimento de alimentos a um continente africano que continua a fazer frente a graves dificuldades alimentares, e que, como constatado pelo presidente do Gana, foi desproporcionalmente afetado pelos impactos globais da invasão da Ucrânia. O panorama alimentar em África é hoje agravado por alterações climáticas e escassez hídrica no Norte de África, pela crise climática e por conflitos e turbulência económica na África Ocidental e Central, assim como por extremos climáticos na África Austral e na própria África Oriental, região na qual vários países também têm estado a braços com contrariedades económicas e conflitos persistentes (com destaque para o Sudão, onde o presente conflito tem vindo a causar uma crise humanitária catastrófica).

A presente conjuntura em África é, de resto, expressiva da realidade mais abrangente de um planeta crescentemente turbulento e cada vez mais exposto à insegurança alimentar, à inanição e à fome. Há que dar firme resposta a essa realidade e não permitir que milhões de seres humanos sejam entregues à privação alimentar. Isto tem necessariamente de passar pela criação de condições que garantam o revigorado, livre e seguro fornecimento de alimentos ucranianos aos mercados e às populações.

Antes de mais, é indispensável que Kyiv possa proteger portos e capacidades agrícolas, territórios e águas territoriais – para o que tem de poder aceder a toda a ajuda militar ocidental de que precisa para tal. Neste nexo, é crucial que receba absolutamente toda a assistência ocidental necessária para garantir a proteção da região de Odessa e dos portos marítimos face ao potencial para uma ofensiva terrestre russa nesse vetor. Uma invasão da região de Odessa inviabilizaria as exportações marítimas, impactando catastroficamente a economia ucraniana e potencialmente despoletando um choque alimentar global, mesmo enquanto colocaria a Rússia às portas da Roménia, ou seja, do flanco sudeste da NATO.

A segurança dos portos e do abastecimento de alimentos ucranianos também pode e deve ser, porém, trabalhada pelo recurso a meios diplomáticos e institucionais. Foi recentemente dado um passo crucial nesse sentido, quando muitas dezenas de estados de todos os continentes se uniram em apoio ao comunicado conjunto da Cimeira para a Paz na Ucrânia. Entre outros pontos, o comunicado constata a importância, para a segurança alimentar global, da livre, plena e segura navegação comercial, tal como do acesso aos portos, e aponta que os produtos agrícolas ucranianos devem ser segura e livremente fornecidos a países terceiros. É agora antecipada uma conferência na Turquia para definir um plano de ação, a negociar depois com a Rússia, para a concretização de tais fins.

É importante que o assim emergente consenso internacional em prol da segurança do comércio e dos abastecimentos alimentares ucranianos pelo Mar Negro possa ser, daqui em diante, vigorosamente expandido para abranger também países que, mesmo não tendo apoiado o comunicado da Cimeira, teriam interesse na plena restauração das cadeias de abastecimento e na segurança alimentar que garante. Acima de tudo, há que garantir o contributo dos países em desenvolvimento em África e noutras regiões do globo que ainda não se tenham juntado a este consenso. Estes países são, afinal, interessados essenciais na estabilidade dos mercados alimentares e, sendo quase sempre países pós-coloniais em desenvolvimento, usufruem de especial legitimidade para exigir à Rússia que respeite o abastecimento alimentar global.

Adicionalmente, esse consenso emergente poderia ser mobilizado para apoiar o recentemente anunciado projeto de Kyiv para a criação de uma plataforma internacional em prol de um Mar Negro seguro. Ou, ainda, para prestar assistência à recém-inaugurada iniciativa Turquia-Roménia-Bulgária para desminagem no Mar Negro. Da mesma forma, poderia ser criada, sob a égide desse consenso, uma iniciativa conjunta para pressionar a Rússia a cessar todos os ataques contra a agricultura ucraniana e, de igual modo, para dar apoio à recuperação dos portos e das capacidades rurais e de produção agroalimentar da Ucrânia. Cabe, afinal, ao mundo ajudar a proteger o celeiro ucraniano e a segurança alimentar dos mais vulneráveis.