O HeForShe promove a participação “deles” na conversa sobre os direitos “delas”. É um movimento feminista e foi lançado pelas Nações Unidas (ONU) em 2014. A associação Boys Just Wanna Have Fun procura expandir a noção de masculinidade e incluir no desporto uma maior diversidade de perfis de homens e mulheres, para que todos sintam que podem praticar exercício físico de forma livre e segura.

Em comum têm a vontade de desafiar as ideias pré-feitas acerca dos papéis dos homens e das mulheres na sociedade. Ambos acreditam que esta é uma das vias para a consolidação da igualdade de oportunidades e que, no fim, todos saímos a ganhar.

O tema vai estar em debate no encontro “O homem promotor da igualdade”, organizado pela associação Quebrar o Silêncio e que se realiza no ISCTE, nos dias 15, 16 e 17 de novembro.

Das chapadas de luva branca às discriminações de género que prejudicam os homens: o papel do HeForShe no crescimento pessoal e social

“A nós, a elas, e a nós junto delas”. A frase podia ser só mais uma entre muitas que foram ditas numa conferência organizada pelo HeForShe em 2016. Podia, mas não é. Para Mónica Canário, coordenadora em Portugal do movimento que tem a chancela da ONU, a mensagem representa uma das várias “chapadas de luva branca” que tem levado ao longo da vida.

A frase surgiu na sequência de um desafio que foi lançado aos participantes da conferência: escrever um compromisso que os responsabilizasse na luta pelas igualdades.

Quando Mónica reparou que havia um grupo de rapazes a participar, assumiu que as respostas vindas dali seriam disparatadas. “Estava lá um grupo de quatro ou cinco rapazes. E eu pensei: ‘Vai sair asneira’”, conta a responsável. No momento de ver as respostas dos participantes, Mónica diz que se arrependeu da sua primeira reação. “Eles escreveram uma frase engraçada: ‘A nós, a elas, e a nós junto delas'. E depois fiquei triste comigo, porque não devia ter pensado aquilo”, confessa.

“Para mim foi importante, porque foi uma chapada de luva branca. Tenho levado chapadas de luva branca nos últimos dois anos [e ao longo da vida, acrescentou mais tarde], exatamente pela quebra de estereótipos que eu própria tinha. É um trabalho contínuo e pessoal. Só não vale é desistir”, afirma a responsável pelo movimento que chegou a Portugal em 2016/2017 [os primeiros passos foram dados em dezembro de 2016, mas o lançamento oficial foi em março de 2017]. O pontapé de saída do HeForShe a nível mundial foi dado em 2014 nas Nações Unidas, por Emma Watson, numa sessão aplaudida de pé por aqueles que assistiam à cerimónia, incluindo o secretário-geral à data, Ban Ki-Moon.

A atriz, conhecida entre outros motivos pela participação na saga Harry Potter, foi convidada pela ONU para ser embaixadora do HeForShe. Também em Portugal há figuras públicas a dar a cara pelo movimento. José Fidalgo é o embaixador português, havendo outras personalidades que se vão associando pontualmente - Jorge Corrula, Rui Maria Pêgo, Carolina Deslandes e Ana Galvão são alguns exemplos.

Numa tradução livre, HeForShe significa ElePorEla. A ideia é que todos — homens, mulheres, rapazes e raparigas — se juntem na luta pela igualdade de género. Tal como “a mulher tem sido excluída de grande parte das discussões e a balança do género tem estado desequilibrada” a favor dos homens, “também não está correto tirar a voz aos homens” nesta discussão, defende Mónica.

Mas, se os homens têm privilégios, porque haviam de se querer juntar a este movimento? Não ficam a perder com isso? “A resposta é não”, afirma Mónica sem hesitar. Não só porque “têm coisas interessantes a dizer”, mas também porque “eles próprios sentem na pele discriminações por causa do patriarcado em que estão baseadas as sociedades”.

Mónica recorre a estatísticas sobre a licença de paternidade para exemplificar a ideia: “Segundo os últimos dados que vi — penso que relativos a 2016 —, apenas 75% dos homens usufruem dessa licença”.

Os números do Instituto Nacional de Estatística indicam que, em 2016, por cada 10 mulheres que tiraram licença apenas 7,6 homens receberam o subsídio por licença parental obrigatória de uso exclusivo do pai, e apenas 6,7 receberam o subsídio por licença facultativa. Os valores descem para 34% quando nos referimos ao número de homens que partilharam a licença de 120 ou 150 dias. Na experiência de Mónica, embora a legislação atribua aos pais o direito de se dedicarem aos filhos recém-nascidos, muitas vezes há “uma pressão por parte das chefias” para que eles não usufruam desse tempo.

Por outro lado, há outras áreas em que a “balança do género” parece estar desequilibrada de forma prejudicial para as mulheres. Mónica Canário, que é também assistente de investigação no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (CEI-IUL), destaca as desigualdades salariais e o facto de os cargos de poder serem maioritariamente ocupados por homens. “Temos dados de ‘trinta mil’ entidades e instituições que provam que existe desigualdade de género. É real”, insiste a investigadora, que frequenta atualmente o doutoramento em Ciência Política, também no ISCTE.

Dados recentes da agência europeia de estatísticas confirmam estas afirmações. Segundo um estudo de 2017 do Eurostat, do qual resultou a publicação “A vida das mulheres e dos homens na Europa - Um retrato estatístico”, as mulheres portuguesas ganham em média menos 1,20€ por hora do que os homens, no desempenho das mesmas funções (na União Europeia, a diferença média é de 2,92€ por hora). Os cargos de gestão são aqueles em que a discrepância é maior, com os homens portugueses a ganharem mais 5,61€ por hora do que as mulheres (o valor sobe para 9,14€ por hora na UE).

Explore o gráfico interativo para ficar a conhecer estes e outros valores:

Já o Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE, na sigla inglesa - European Institute for Gender Equality), num índice calculado em 2015, retrata as diferenças no domínio dos cargos de poder: há três anos, em Portugal, 77,1% dos ministros e 67,5% dos deputados eram homens (na União Europeia, os valores eram de 73,2% e 72,3%, respetivamente).

Para além das áreas laboral e política, o HeForShe, que está integrado no quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (“Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e meninas”), desenvolve iniciativas no âmbito de mais quatro temáticas: saúde, identidade, violência e educação.

Em Portugal, o movimento já contou com pelo menos trinta colaboradores regulares, sempre em regime de voluntariado, e tem organizado “ações de sensibilização, campanhas, workshops e conferências”, enumera Mónica. A coordenadora destaca, a título de exemplo, uma campanha de alerta para o abuso sexual e para o assédio sexual, organizada pelo núcleo do Porto — um dos mais ativos, segundo a responsável — em parceria com a Federação Académica do Porto; a colaboração com o IADE (Instituto de Arte, Design e Empresa) na elaboração de cartazes de sensibilização contra a violência doméstica; e as conferências organizadas no contexto universitário, onde os jovens chegam com muitas “dúvidas”.

"O homem promotor da igualdade - Homens e mulheres lado a lado pela igualdade de género"

O encontro realiza-se nos dias 15, 16 e 17 de novembro, no ISCTE-IUL. A entrada é livre para as sessões dos dias 15 e 16. O dia 17 é destinado a diferentes workshops e a entrada é paga.

As inscrições podem ser feitas através do site https://www.promotoresdaigualdade.pt/, onde se encontra toda a informação sobre o evento.

No encontro que se irá realizar no ISCTE, a coordenadora do HeForShe em Portugal vai dinamizar um workshop sobre as “Princesas da Disney - Estereótipos e papéis de género nos contos tradicionais”. A ideia é criar um momento em família para falar sobre as mensagens passadas pelos filmes infantis. Fã assumida da Disney, Mónica diz que a questão não passa por deixar de ver os desenhos animados, mas por criar um espaço para que pais e crianças se habituem a questionar as histórias, as personagens, as referências.

Quando interrogada sobre os papéis concretos que um homem pode ter no trabalho pela igualdade de género, Mónica enfatiza a importância de o homem não ter “vergonha de se assumir como feminista”, quando tal é pertinente nas conversas do quotidiano, bem como a educação dada aos filhos e às filhas, nomeadamente não negando a compra de uma boneca se o filho mostra interesse por um brinquedo dessa natureza ou não proibindo a inscrição no futebol “às raparigas que querem jogar”.

Boys Just Wanna Have Fun: O desporto como instrumento de inclusão social

Nem só de força e resistência é feito o homem. Ou, nas palavras de Rúben Coelho, “ser homem não implica não ter dor, não sensível, ser agressivo. Nada disto é ser homem”.

O que é, então, ser homem? Rúben Coelho, presidente da associação Boys Just Wanna Have Fun, vai procurar responder a esta pergunta sob o ponto de vista do desporto, no encontro da Quebrar o Silêncio.

Numa comunicação intitulada “Jogas como uma menina”, o convidado quer relacionar “as várias dimensões de ser homem”, a prática desportiva e a igualdade de género.

Rúben Coelho esforça-se diariamente para que o desporto seja cada vez mais um espaço onde qualquer pessoa se sente bem recebida, “independentemente da [sua] orientação ou identidade sexual, raça, idade ou religião”. A associação define-se, por isso, como sendo “verdadeiramente inclusiva”.

A Boys Just Wanna Have Fun (BJWHF) nasceu em 2010 quando um grupo de amigos “que pretendia jogar râguebi” sentiu que não tinha “espaço nos clubes existentes”, porque os atletas “não poderiam nunca expressar-se de forma honesta [no que diz respeito à sua identidade sexual]”. Porque não? Porque, “quando falamos de desportos coletivos, o ambiente é particularmente heteronormativo, muito masculinizado e também muitas vezes homofóbico”, explica Rúben. Estes contextos “acabam por inibir as pessoas de se assumirem enquanto homossexuais, bissexuais ou qualquer que seja a forma diversa que não a heterossexual”, continua.

Oito anos depois, Rúben diz que as diferenças são visíveis. As “agressões verbais, os insultos homofóbicos em campo e a violência física” deram lugar aos cumprimentos cordiais; e da rejeição de integração da BJWHF na Federação Portuguesa de Rugby por duas vezes, a equipa passou a receber convites para torneios amigáveis. “Isto mostra que efetivamente há uma evolução”, assegura.

Pitch Beach, torneio de râguebi organizado pela BJWHF
Pitch Beach, torneio de râguebi organizado pela BJWHF Pitch Beach, torneio de râguebi organizado pela BJWHF créditos: Boys Just Wanna Have Fun

Para o presidente da associação, que é também atleta na equipa de natação da “casa”, estes resultados são fruto da conjugação das duas principais dimensões do trabalho desenvolvido pela BJWHF. Por um lado, a associação é “um espaço seguro, confortável”, que as pessoas frequentam pelos benefícios da prática desportiva para a “saúde física e psicológica”. Por outro lado, há uma mensagem política que é transmitida, através da participação em debates, do trabalho de desconstrução dos estereótipos de género e da promoção de campanhas contra a exclusão, nomeadamente contra a homofobia.

As duas dimensões estão estreitamente relacionadas no dia-a-dia desta associação que conta com mais de 300 associados e cerca de 130 praticante por época. No tango, por exemplo, os papéis podem ser invertidos: “Podemos ter mulheres leaders [quem conduz o par na dança] e homens followers [aqueles que são conduzidos]”; ou até “ter um homem leader com um homem follower”. Para além disso, nos treinos das diferentes modalidades — na BJWHF atualmente pratica-se râguebi, natação, atletismo, vólei, futsal e tango —, formam-se equipas mistas sempre que há homens e mulheres a querer participar. Aliás, o nome da associação e o nome da equipa de natação (Boys Just Wanna Have Fun e Lisbon Pool Boys, respetivamente) poderão vir a ser alterados para serem também eles mais inclusivos, uma vez que hoje em dia conservam os nomes originais, marcados pela ênfase no masculino.

Lisbon Crows, equipa de vólei da BJWHF
Lisbon Crows, equipa de vólei da BJWHF Lisbon Crows, equipa de vólei da BJWHF créditos: Boys Just Wanna Have Fun

Finalmente, a participação em competições com outras equipas são também momentos de afirmação: “Cada vez que jogamos com uma equipa adversária, o confronto acaba por levar as outras pessoas a pensarem sobre o motivo pelo qual segregam da maneira que fazem”, explica Rúben. “E o mais interessante é sobretudo quando damos luta ou quando ganhamos. Aí, veem que a prestação desportiva é independente da orientação sexual. E isso é sem dúvida uma grande conquista”, completa, orgulhoso.

A BJWHF também participa em campeonatos destinados a equipas gay. Disso são exemplo os Gay Games — espécie de Jogos Olímpicos considerados “amigáveis” para a comunidade LGBT —, a Bingham Cup ou a Union Cup — torneios internacionais de râguebi para clubes LGBT —, e o Pitch Beach, torneio internacional organizado pela própria BJWHF e para o qual são convidadas “equipas congéneres”.

Quando questionado sobre se a existência de torneios destinados a equipas gay não contribui para uma maior segregação da comunidade LGBT e para a fragmentação social, Rúben responde que não: “Contribui para a normalização. Infelizmente fala-se muito pouco sobre LGBTfobia no desporto. Estes campeonatos, ao existirem e ao terem mediatização, fazem com que as pessoas falem sobre isto”. Para além disso, complementa, estas competições pretendem ser inclusivas a vários níveis. Nos Gay Games, por exemplo, todos podem participar: homens, mulheres, gays, heterossexuais, seniores, pessoas com deficiência, amadores, profissionais.

Para Rúben, uma forma de tornar o desporto um espaço mais seguro para todos seria através da adoção pelas federações profissionais de “um discurso ativamente condenatório” das “manifestações homofóbicas”. Por outro lado, podem ser reconhecidas as atitudes de inclusão, como faz a UEFA com o prémio Equal Games — em 2018, o futebolista Guram Kashia, capitão da seleção da Geórgia, foi distinguido por ter usado uma braçadeira com as cores do arco-íris, como atitude de crítica aos elevados níveis de homofobia no seu país.

No encontro desta semana, Rúben vai também falar sobre como os estereótipos de género são reforçados por muitas das práticas e dos discursos do nosso quotidiano, em particular nas aulas de Educação Físicas nas escolas. Quando dizemos “jogas como uma menina”, o objetivo é que “seja um insulto para os rapazes que são visados, mas é simultaneamente um insulto para as meninas”, explica Rúben. “As meninas são vistas como sendo menos capazes, menos fortes, mais sensíveis à dor, menos resistentes” e, de uma maneira geral, associa-se “o desporto à masculinidade”.

Na perspetiva do presidente da BJWHF, esta narrativa condiciona desde cedo, não só a liberdade de escolha no que diz respeito à prática de desporto, mas também a forma como o exercício é praticado por cada um, acabando por levar à exclusão ou estigmatização de muitos rapazes e raparigas. “O desporto é suposto ser um instrumento de inclusão social” e é preciso que façamos “este movimento de integração”, conclui Rúben.


Este artigo faz parte de uma série de entrevistas sobre a igualdade de género realizadas pelo SAPO24 no âmbito do encontro "O homem promotor da igualdade", que se irá realizar nos dias 15, 16 e 17 de novembro, no ISCTE, e é organizado pela associação Quebrar o Silêncio.

Pode ler aqui as entrevistas publicadas até ao momento:

Ângelo Fernandes: "A igualdade de género deve incluir todas as partes. E o homem é uma delas"

Vânia Beliz: “Os pais associam a conversa sobre sexualidade ao dia em que se sentam no sofá com os filhos a falar sobre o tema". E aí já vão atrasados

Cláudia Morais sobre violência emocional: "Se vivemos com a sensação de pulga atrás da orelha, normalmente é porque está lá uma pulga"

Fado Bicha: "O fado foi saindo de um armário e entrou noutro maior, onde já cabem mais pessoas"

Rosa Monteiro: “Desde quando é exagero reivindicar direitos humanos? Exagero são os discursos xenófobos e misóginos”