O Haiti é um país colapsado onde 11 milhões de pessoas sobrevivem em catastrófica emergência social, sanitária e humanitária. Metade da população do país tem dificuldade para conseguir alimentação mínima. Os lugares de distribuição de mantimentos por organizações não-governamentais (ONG) são palco frequente de tiroteios. Todos os dias dezenas de pessoas são raptadas, violadas ou mortas e muitos corpos ficam abandonados no chão.

A falta de quase tudo – analisa uma enfermeira italiana que integrou uma equipa dos Médicos sem Fronteiras (MSF) - leva muitos dos mais novos a passarem para o lado dos gangues armados: “juntarem-se aos bandos de terror é um modo para resolverem necessidades”.

Há que recuar às origens do país: a revolta dos escravos, em 1791, contra a opressão colonial dos franceses, levou à fundação no Haiti de um estado livre da escravidão. Foi o primeiro país a proclamar essa libertação. Mas a história do Haiti na maior parte dos 132 anos decorridos é a de um inferno que alguns definem “ainda pior que o da escravatura”. O sacerdote Victor Auguste, missionário no Haiti, testemunha agora que “não é possível descrever por palavras a vida quotidiana no Haiti, sobretudo na área metropolitana da capital, Port-au-Prince”. A população navega à deriva num mar de violência e miséria.

A realidade calamitosa piorou a partir do assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 7 de julho de 2021. Tudo está agora, coincidem os testemunhos de voluntários de ONG que permanecem no Haiti, à mercê de gangues e centenas de pandilhas rivais, com crueldade infinita.

Port-au-Prince, é descrita por uma médica dos Médicos sem Fronteiras  como “prisão gigante a céu aberto, com grande parte da população de seis milhões de pessoas incapaz de se movimentar livremente e com a violência de bandoleiros com catanas, espingardas e pistolas a ditar a vida quotidiana”.

Os MSF sabem que correm muitos riscos pessoais com a permanência no Haiti. Mesmo assim estão em quatro hospitais (Cité Soleil, Tabarre, Turgeau, Carrefour). E criaram equipas móveis para casos especiais.

“Barbecue”. O chefe mais poderoso dos gangues que devastam o Haiti

Tudo faz do Haiti um Estado sem instituições. Não há parlamento, há governos episódicos mas sem autoridade, a polícia tem uns 10 mil agentes mas sem capacidade para policiar e que não metem os pés na maior parte dos bairros de Port-au-Prince.

Há um chefe mais poderoso dos gangues que devastam o Haiti. É conhecido há 40 anos pelo nome de guerra, “Barbecue”. Ele diz que a alcunha vem do facto de a mãe vender frangos assados pelas ruas de Port-au-Prince.  Há quem diga que é “Barbecue” porque essa é, de sempre, a palavra de ordem dada aos mandados para que vão queimar uma casa com as pessoas a ficarem assadas lá dentro.

“Barbecue” tem nome no registo de nascimentos: é Jimmy Chérizier, tem passado como oficial de polícia, função em se metamorfoseou para se tornar chefe criminoso, e tem presente como chefe do G9 do Haiti. O G9 é uma federação de gangues que controlam todo o acesso ao porto e ao aeroporto (com movimento aéreo comercial frequentemente suspenso) de Port-au-Prince, que praticam a extorsão de dinheiro e mercadorias a comerciantes e transportadores, e que instalam o caos violento..

Os relatos convergem: em Port-au-Prince vive-se em estado de guerrilha permanente. Há as linhas da frente dos múltiplos confrontos, há os bandos armados e há sempre civis deslocados que tentam algum refúgio. Há as mulheres e meninas violadas e os residentes que são mortos por nada.

É prática que as vítimas dos alvos de “Barbecue” sejam encontradas com assinatura: um tiro na testa. Dizem que aparecem todos os dias pelo menos meia dúzia de cadáveres por entre a imundície nas ruas

A já referida médica dos MSF conta que quando precisa de se deslocar é sempre por percurso curto e tenta que alguém de confiança verifique se o caminho está sem emboscada. Procura que qualquer deslocação seja ao amanhecer, por parecer a hora menos perigosa para incidentes em assaltos dos gangues. Também é cedo na manhã que há sempre alguém a procurar recuperar os corpos de desaparecidos. É prática que as vítimas dos alvos de “Barbecue” sejam encontradas com assinatura: um tiro na testa. Dizem que aparecem todos os dias pelo menos meia dúzia de cadáveres por entre a imundície nas ruas. Toda a gente evita saber quem disparou para que  não seja uma vítima seguinte. Também é costume não olharem para o abatido. Fingem não ver, não saber. Ninguém faz perguntas. Todos tentam evitar o encontro com um matador com uma pistola numa mão e, às vezes, uma garrafa de rum na outra, constata a médica dos MSF que ajuda neste relato

Haiti
Haiti créditos: AFP or licensors

Do “Papa Doc” ao “Baby Doc”: 30 anos de ditadura

Tudo se conjugou nas últimas décadas para que a existência no Haiti seja um desastre continuamente agravado: terramotos, furacões, secas, inundações, conspirações, ditaduras militares, líderes messiânicos, oligarquias, gangues do narcotráfico e bandos armados com arsenais poderosos.  O território está nas mãos desses gangues.

O negócio criminoso de Barbecue cresceu muito com o assalto à imensa ajuda internacional que chegou ao Haiti após o terramoto de 2010. Então, o Haiti foi um dos países com maior número de ONG internacionais a operar no território para ajudar. Foram tantas que algumas nem saíram do perímetro do aeroporto por falta de missão atribuída.

O terramoto de 2010 simboliza o começo macabro da devastação do Haiti, que continua sempre mais infernal. Esse grande terramoto matou mais de 300 mil pessoas e deixou a vasta cidade de Port-au-Prince em ruínas e miséria.

A calamidade natural de 2010 surgiu em cima da terrível deriva política, social e económica iniciada em 1957, quando  François “Papa Doc” Duvalier se instalou no comando do Haiti como ditador vitalício, a quem sucedeu 20 anos depois o filho, Jean Claude “Baby Doc”, que herdou o poder quando tinha 19 anos, e foi tão brutal e ainda mais corrupto que o pai. Os Duvalier tiveram sob mando deles o exército, a polícia e as milícias tonton-macoutes a quem é atribuída a tortura, desaparecimento e morte de milhares de haitianos. Desviaram centenas de milhões de dólares das arcas de fundos públicos. O terror dos Duvalier, pai e filho, durou 29 anos. “Baby Doc” foi derrubado por uma revolta popular em janeiro de 1986. Conseguiu escapar para o exílio em França, onde passou 25 anos.

Os Duvalier tiveram sob mando deles o exército, a polícia e as milícias tonton-macoutes a quem é atribuída a tortura, desaparecimento e morte de milhares de haitianos. Desviaram centenas de milhões de dólares das arcas de fundos públicos. O terror dos Duvalier, pai e filho, durou 29 anos.

“Baby Doc” regressou ao Haiti em janeiro de 2011, um ano depois do grande terramoto e em vésperas de eleições presidenciais. Declarou que voltava para ajudar “à reconstrução e reconciliação no Haiti”. Uma associação de vítimas de violações   de direitos humanos juntou provas, tarefa fácil, e denunciou o ditador à justiça. O juiz de primeira instância arquivou o processo ao declarar os crimes prescritos. As vítimas contestaram e argumentaram no recurso para tribunal superior que não há prescrição possível para crimes de lesa humanidade. Dezenas de vítimas declararam perante um novo juiz, mas o processo viria a ser abruptamente encerrado em outubro de 2014 na sequência da morte súbita de “Baby Doc”, por ataque cardíaco.

A morte deste ditador que ao longo de 19 anos prolongou os abusos criminosos do pai congelou os esforços para que fosse feita justiça e apuradas as muitas cumplicidades.

Após o terramoto de 2010, com a comunidade internacional à cabeceira do Haiti, foi tentada a normalização das instituições políticas no país. Mas as práticas do tempo dos Duvalier estavam entranhadas em muita gente. Os gangues trataram de sabotar as políticas que tentavam instalar a normalidade democrática. Os governantes foram sendo cada vez mais acusados de corrupção e cumplicidade com os bandidos. Muitos dos grandes negócios do narcotráfico tiveram a operação exportada de países da América Latina para o Haiti. Tinha havido eleições em 2011, a seguir em 2016. Depois, nunca mais.

O mistério do assassinato do presidente

Não há presidente constitucional desde o assassinato de Jovenel Moïse, em julho de 2021, quando perto da meia-noite regressou a casa com a família após um jantar com amigos. Todos em casa foram assassinados. Os matadores, cerca de dúzia e meia que, fortemente armados, invadiram a casa do presidente ainda tiveram tempo para lhe arrancar um olho. Ninguém viu o quer que seja. Permanece mistério sobre a mensagem deixada com o olho arrancado. Há quem diga que o presidente Jovenel tinha estado metido com “Barbecue” nas operações criminosas que vão do sequestro e extorsão ao narcotráfico. Está por esclarecer este caso do assassinato do presidente. Há 18 ex-militares colombianos condenados como autores materiais do assassinato, mas não está apurado quem foi o mandante. Há quem diga que foi “Barbecue”, eventualmente em parceria com algum cartel do narcotráfico.

Com a morte de Jovenel, a presidência vaga passou a ser exercida, em moso interino e parcial, pelo primeiro-ministro Ariel Henry. Tinha crédito de ser homem sério.

“Barbecue” tratou de minar a autoridade de Henry. Ficou uma vez mais exposta a impotência do mando político com perfil civil e democrático. Em março deste 2024 “Barbecue” comandou um sofisticado assalto, que envolveu drones e tecnologia para desativar sistemas de alarme em duas cadeias, a penitenciária nacional e a cadeia de alta segurança de Croix de Bouquets. Ficaram à solta 3.696 prisioneiros, com crimes violentos no cadastro.

Instalou-se no Haiti ainda mais caos e ainda mais medo. Muitos dos estrangeiros que ainda continuavam no Haiti passaram à fase ativa de planos para deixar do país. Sabe-se que os estrangeiros são alvo preferido para sequestro porque costumam render mais no resgate.

Com o abismo ainda mais fundo cresceu o êxodo de haitianos. Na semana seguinte ao assalto às cadeias que pôs os criminosos à solta, dezenas de milhar de haitianos conseguiram fugir para a República Dominicana, o país vizinho que partilha com o Haiti esta ilha das Caraíbas.

“Salvem o Haiti, salvem a região”

A tensão na República Dominicana pela chegada dos haitianos em êxodo foi tão grande que o presidente dominicano, Luís Abinader, lançou um desesperado grito com pedido de socorro: “salvem o Haiti, salvem a região”. Moveu-se a administração dos Estados Unidos da América e também a comunidade de países da região.

O governo de Washington patrocinou a deslocação para o Haiti de um contingente policial (cerca de um milhar de homens) do Quénia com treino especial para cenários de caos. Ariel Henry, que acumulava o cargo de primeiro-ministro com o de presidente interino, viajou a Nairobi para assinar o acordo de cooperação. Foi, mas não conseguiu regressar. A pandilha de “Barbecue” fechou o aeroporto de Port-au-Prince e arranjou maneira de o forçar à demissão.

Há um novo chefe de governo em funções, Gary Conille, instalado com o patrocínio conjunto de Washington e da comunidade de países das Caraíbas. Tem o encargo de, com o apoio da polícia internacional já no Haiti, organizar um processo eleitoral democrático e submeter os fora da lei à justiça. Duvida-se que possa ser implacável como anunciou.

Quem está no Haiti em missão de ajuda relata que neste verão de 2024 o inferno continua a agravar-se. A violência sexual maciça é um instrumento de domínio territorial dos gangues, com incursões pelos territórios dos rivais.

Os polícias internacionais já estão a ser acusados, tal como aconteceu com os capacetes azuis em 2010, de praticarem abusos sexuais e de serem portadores de doenças infecciosas. Há no Haiti, sempre houve, muita morte por cólera e por dengue.

Quem está no Haiti em missão de ajuda relata que neste verão de 2024 o inferno continua a agravar-se. A violência sexual maciça é um instrumento de domínio territorial dos gangues, com incursões pelos territórios dos rivais. Cada gangue tem o seu feudo e domina quem lá vive. Muita gente não tem casa. Há os que moram em carcaças de velhos carros abandonados. Centenas de haitianos têm morada nas ruínas do antigo Teatro Nacional. Os bidonvilles são, para muitos, do melhor alojamento que se arranja. A falta de água potável é dramática. A ONU alerta que há muita gente em risco de morrer de fome.

O presidente Abinader, da vizinha República Dominicana, repete uma queixa: “os compromissos de ajuda ficam sempre pelas palavras”. O Haiti está mergulhado no inferno.