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Estava alguém dentro de casa.

De pé na escuridão do quarto do filho, ela via, através da porta aberta e ao fundo do corredor comprido, o patamar ao cimo das escadas íngremes da cozinha iluminado pelo brilho ténue de uma luz de presença.

Aquela luz servia para as crianças, nas suas deambulações noturnas, conseguirem ver as escadas. Para evitar que caíssem, silenciosas e indefesas, enquanto caminhavam dos seus quartos para o quarto dos pais durante a noite, à procura de água, ou reconforto, ou depois de molharem a cama.

A velha casa deixava o vento sibilar-lhe pelas fendas e ranger-lhe as vigas. Os barulhos que produzia a enfrentar a tempestade, a sua respiração ofegante e entrecortada, eram familiares. Mas, por entre tudo aquilo, chegavam ruídos que a paralisavam.

Igualmente familiares, mas não àquela hora da noite. Não quando tinha a certeza de ser a única pessoa acordada na casa.

No breve silêncio entre as gélidas rajadas, ouviu-se o chiar de um peso exercido sobre as escadas.

Estás a imaginar coisas.

A sua filha dormia no quarto ao lado. O filho já voltara a adormecer, a poucos passos dela.

Por um momento, a esperança de poder ser o seu marido animou-a.

Para. Isso é impossível.

Maria Francisca Gama junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de outubro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu mais recente livro "A Cicatriz", editado pela Suma de Letras, chancela da Penguin Random House.

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"A Cicatriz" é o segundo livro de Maria Francisca Gama e vai já na 7.ª edição, com mais de 25 mil exemplares vendidos e um fenómeno nas redes sociais, em particular no TikTok.

Mas podia ser a filha de novo a vaguear, sonâmbula. Haviam aferrolhado a porta do quarto da menina que dava para as antigas escadas da frente – um sítio demasiado perigoso para a deixar perambular por lá às cegas. Mas era possível que ela tivesse saído pela outra porta do quarto. Aquela que deixavam destrancada, apesar do sonambulismo da menina e do perigo das escadas da cozinha. A porta que deixavam aberta para ela poder ir à casa de banho de noite, para perceber que, apesar de tudo, era uma menina crescida, confiavam nela, e ela deveria confiar em si mesma.

Sim, isso podia ser uma explicação! E não conseguirias ouvir o intercomunicador dar sinal.

O seu marido instalara um monitor de bebés com sensor de movimento do lado de fora da porta destrancada do quarto da filha, após três noites a encontrá-la de pé, ao lado da cama, no escuro, imóvel e profundamente adormecida.

– O que dizer? – O seu marido encolhera os ombros. – As câmaras são a minha especialidade.

Clic, zum, bip! O monitor acendia-se no quarto deles, e a menina aparecia no ecrã, de passagem, com um aspeto desfocado e pálido por causa da visão noturna da câmara, as retinas a emitir um brilho espelhado, quase animal. Um deles (ela, sempre ela) levantava-se e intercetava a filha antes que ela se magoasse acidentalmente. Guiava a pequena de volta para a cama, afastava-lhe o cabelo escuro dos olhos abertos e vazios, da boca relaxada, e ficava sentada ao seu lado até ela voltar a repousar a cabeça na almofada.

Deve ser isso. Sonambulismo.

E, no entanto, não se conseguia obrigar a mexer-se. Não conseguia desviar os olhos da luz de presença distante. Uma parte de si lembrava-se de que o som da filha naquelas escadas era diferente. Uma parte de si reconhecia que, em todas as deambulações noturnas da sua filha, a pequena nunca chegara a descer as escadas. E os sons vinham das escadas.

Ecoava-lhe na cabeça um trecho distorcido de uma lengalenga, uma das histórias infantis infinitamente lidas que agora permeava a sua consciência.

Se os desejos fossem peixes, teríamos alguns para cozer. Se os desejos fossem peixes, podíamos comê‐los e não morrer.

Um baque surdo, uma pausa. Uma mudança completa e instantânea na sua linha de raciocínio.

Bateu com a cabeça.

Isso às vezes acontecia a quem não estava familiarizado com as excentricidades da velha casa. Qualquer pessoa com mais de um metro e oitenta tinha de inclinar a cabeça ou baixar-se para evitar o teto na curva das escadas da cozinha.

Ouviam-se sons finos, raspados, enquanto a pessoa se reajustava. Recalculava. Voltava a mover-se.

Viu dedos a envolverem o corrimão, como patas brancas de aranha.

O intruso subiu lentamente até chegar ao cimo das escadas, as feições diluídas até à invisibilidade pela escuridão e pela forma como a luz de presença brilhava atrás dele, por baixo. Durante um breve instante, ao olhar para aquela silhueta, viu o seu marido. Abriu a boca para o chamar, perguntar como tinha chegado a casa.

Mas o teu marido não bateria com a cabeça. Não tem altura suficiente.

Com este pensamento, veio a clarificação. As extremidades da figura desajustaram-se, convertendo-se num desconhecido.

É um homem.

Era alto. Os seus braços compridos pendiam, soltos. A sua presença tinha aquele travo rançoso familiar, mas distante, de algo errado e decomposto que ela já antes provara, mas não conseguia identificar.

Reconhece‐lo? Quem é?

O homem inclinou a cabeça e olhou diretamente para a poça de escuridão que a envolvia ao fundo do corredor.

Objetivamente, logicamente, sabia que lhe seria impossível vê-la. Quantas vezes estivera ela naquele preciso lugar, naquela posição exata? Quantas vezes olhara ela para o corredor escuro e torto que leva à zona mais antiga da casa, onde se encontra agora, no quarto do filho? Tentando perceber, a meio da noite, se a porta estava aberta, se o seu pequeno ali estava, em pé, sem nunca conseguir ver nada senão sombras. Porque aquela luz de presença no patamar, fraca e próxima do chão, impedia-a de ver além do seu fraco alcance. Em todas as vezes, todas, tinha de estar quase à porta do quarto do menino para poder ter certeza de que sim, ali estava o seu filho, fora da cama, a observá-la silenciosamente. Em vez de estar a dormir em segurança.

A luz tem de – deve – cegá‐lo.

As sombras transfiguravam o rosto do homem na imagem de um crânio. Negritude total onde deviam estar os olhos. A luz incidia-lhe nos lábios, desenhando um sorriso exagerado. Aquele ser parecia-lhe tão enorme que ultrapassava os limites do razoável. Tão substancial que parecia ter até mesmo a boca, as narinas, os ouvidos cheios de carne.

Faltou-lhe o ar. Era a realidade dele, os detalhes humanos que a sufocavam. O cabelo curto e loiro-escuro espetava-se de lado, como o de uma criança após uma noite de sono. A camisa escura estava apenas meio enfiada nas calças. O homem transferiu o peso de um pé para o outro. Coçou o lado do nariz, depois esfregou o ponto da cabeça onde, provavelmente, havia batido.

Livro: "Nas Sombras"

Autor: Tracy Sierra

Editora: ASA

Data de Lançamento: 10 de setembro de 2024

Preço: € 19,90

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Os olhos dela arregalaram-se. Sentia o sangue espesso a pulsar-lhe com força nos ouvidos, ensurdecendo-a. Apercebeu-se de estar a tremer, sendo atingida por um assomo de vergonha pela total incapacidade de controlar o próprio corpo. Lembrava-se dessa vergonha. Viu, na sua memória, um chão de linóleo. Nenhum sinal de luta, nenhum sinal de tentativa de fuga, apenas imobilidade absoluta e arrepiante.

E o tempo. Tic, tic, tic, deve estar algures um relógio a dizer. Tac, tac, tac, segundos a passar sem serem contados.

Um minuto, dois? Dez? Respira. Pensa. Ele vê‐te. Será que consegue ver‐te?

O tamanho do homem lembrava-a, asfixiantemente, de quão pequena ela era.

A sombra dele colava-se ao teto, projetada pela luz de presença vinda de baixo.

Ele está na tua casa. Na tua casa!

Era por isto que os seus ouvidos estavam ensurdecidos pelo sangue. Que o terror a esvaziava, deixando-a como que sem peso.

Uma pessoa capaz de dar tal passo, de abrir tal cortina?

Ah, sim. Uma pessoa assim está determinada.

Mas... talvez ele não seja real. Talvez estejas a ver coisas.

Esta ideia derreteu-se dentro dela. O homem podia ser um pesadelo vívido. Ou um dos medos que ela esfregava entre o polegar e o indicador, uma das preocupações que ela roía e polia até se tornarem fantasias mórbidas, de olhos postos, sem conseguir dormir, no teto do quarto.

Onde vais tu buscar essas coisas horríveis? Já chega. Imaginação hiperativa. Um sonho. Um‐dois‐três, inspirar, expirar, abrir os olhos. E, puf! Ele desaparecerá. Vais ver.

Mas quando forçou os olhos a fecharem-se, e os forçou a voltarem a abrir-se, o homem não havia desaparecido. Pela primeira vez, notou que ele estava de ténis.

Algures no fundo do seu ser, compreendeu as implicações disso. Ele não podia ter caminhado pela tempestade de neve com aqueles ténis. Imaginou-o sentado no banco do vestíbulo, lá em baixo. Descalçando as botas de neve. Pousando-as cuidadosamente no chão, lado a lado. Tirando os ténis de um saco e calçando-os. Um hóspede consciencioso. Que planeava ali ficar algum tempo.

Ele está muito, muito determinado.

Desviou os olhos para o lado, para ver os flocos de neve a cair. A sua brancura era a única coisa visível lá fora, tocando e depois afastando-se em rodopios da pequena tira de vidro visível entre as cortinas, assentando nos cantos da janela, suavizando-lhes a forma. Antes de começar a tempestade, havia pelo menos trinta centímetros de neve acumulada no chão. À hora de dormir, já eram quase sessenta. Agora – bem, de onde estava, não conseguia ver. Mas sabia que a sua casa, toda a propriedade, o mundo inteiro estavam bem embrulhados.

Ao lado da janela ficava a cama do seu filho. O pequeno encontrava-se enrolado num monte minúsculo, macio, adormecido, o peito a mover-se ligeiramente para cima e para baixo sob o cobertor verde. Um pouco de cabelo e uma curva da sua orelha eram as únicas coisas discerníveis na escuridão.

Enquanto olhava para a forma do filho, sentia no coração um aperto de amor e pânico tão grande que quase gemeu com a dor. Pensou nas suas bochechas macias e cheias, na forma como se encontravam com o pequeno osso do queixo. As proporções doces, quase como um desenho animado, do seu pequeno ser. A tenra barriga arredondada. As pernas e os braços finos, as ancas retas. O seu rapaz pequeno e perfeito, que era uma pessoa completa- mente formada, por mais minúsculo que fosse. Por mais recente.

E agora?

Que vai acontecer agora a esta pequena pessoa?

Arrastou os olhos de volta para o homem.

Dez segundos? Dez minutos?

Ele estava ali há apenas um instante. Estava ali desde sempre.

Mas não pode acontecer. Isto não pode acontecer. Não a ti.

Estas coisas acontecem. Estas coisas acontecem todos os dias.

Deve ser culpa tua. Que fizeste?

Sentiu um puxão de desespero no fundo da língua.

Fizeste tudo bem, não fizeste? Trancaste as portas. As janelas.

Que fizeste para merecer isto?

Mas ela sabia, melhor do que a maioria das pessoas, que merecer pouco tinha que ver com ter. Estava certa de que quase ninguém tinha voto na matéria acerca das piores coisas que lhe aconteciam.

O homem estava pacientemente quieto na mancha de luz fraca. Tão terrivelmente, aterrorizadoramente paciente. Observou-o à escuta dos mínimos sons de vida. Observou-o a escolher os próximos passos.