A «verdadeira» (sublinho as aspas) história da palavra «caralho» aparece em muitas páginas por essa Internet fora. Aqui fica uma das versões mais conhecidas, repetida em várias publicações em linha (curiosamente, não refere o nome «cesto da gávea», que aparece em muitas outras versões da mesma história):

«Segundo a Academia Portuguesa de Letras, caralho é a palavra com que se denominava a pequena cesta que se encontrava no alto dos mastros das caravelas, de onde os vigias perscrutavam o horizonte em busca de sinais de terra. O caralho, dada a sua situação numa área de muita instabilidade (no alto do mastro) era onde se manifestava com maior intensidade o rolamento ou movimento lateral de um barco. Também era considerado um lugar de castigo para aqueles marinheiros que cometiam alguma infracção a bordo. O castigado era enviado para cumprir horas e até dias inteiros no caralho e quando descia ficava tão enjoado que se mantinha tranquilo por um bom tempo. Daí surgiu a expressão: Vai pró caralho. Hoje em dia, caralho é a palavra que define toda a gama de sentimentos humanos e todos os estados de ânimo.»

A história, tal como contada acima, é mesmo um vírus: está construída para se espalhar. Tem logo uma evocação de autoridade (a Academia Portuguesa de Letras) para que ninguém se atreva a duvidar! Depois, remete para aventuras, navegações, castigos de marinheiros. Revela-nos algo que não conhecíamos sobre o mundo. Uma maravilha — mas uma maravilha falsa do princípio ao fim.

É falsa, mas prometo: a verdade sobre a origem da palavra é mais interessante, embora não a conheçamos na totalidade (é fácil criar mentiras bem compostas; é mais difícil escavar a verdade).

Comecemos então pelo princípio: a famosa Academia Portuguesa de Letras. É famosa, mas tem um problema que a distingue de todas as outras academias de letras: não existe. Existem academias de letras noutras paragens: o Brasil tem uma Academia Brasileira de Letras, Espanha tem a Real Academia Espanhola, a França tem a Academia Francesa. Ora, Portugal não tem uma academia dedicada apenas às letras. Existe, isso sim, a Academia das Ciências de Lisboa, com uma Classe de Letras.

Portanto, nenhuma Academia Portuguesa de Letras associou a origem da palavra «caralho» ao cesto das caravelas. Se formos generosos com a história e quisermos ver na referência uma alusão à Academia das Ciências de Lisboa, podemos sempre consultar o famoso dicionário dessa academia, que tem um verbete dedicado ao palavrão. Afirma-se por lá que a sua origem de «caralho» é a palavra latina (reconstruída) *caracŭlum, ou seja «pequeno pau». Não é uma etimologia aceite por todos, mas já lá chegaremos. Quero só sublinhar que o dicionário nada diz sobre cestos ou caravelas.

Conselho de amigo: quando inventar uma história e quiser dar-lhe uma patine de verdade, use uma instituição verdadeira. Pelo menos, demoramos mais uns segundos a verificar a veracidade da história.

Os primeiros registos de «caralho»

A referência à academia poderia estar errada e, mesmo assim, a história ser verdadeira. Ora, não o é — por três razões: (1) a história ignora um facto essencial sobre a palavra; (2) os primeiros registos escritos da palavra não têm nada que ver com navegações nem com cestos; (3) não há registos anteriores ao século XX sobre uma associação do cesto (ou do mastro) das caravelas à palavra «caralho».

O facto essencial que a história ignora é algo que acompanha a palavra desde os primeiros registos da sua existência: a palavra refere-se ao órgão sexual masculino. É verdade que, a partir desse sentido, é depois usada como interjeição em situações em que o órgão não é visto nem achado. É isso que acontece com muitos palavrões, transformados em interjeições. No entanto, ninguém nega que o sentido denotativo da palavra é mesmo esse: o órgão sexual masculino.

Vejamos agora aquilo que sabemos, de facto, sobre o aparecimento da palavra. Como não temos gravações das primeiras vezes que alguém a usou (uma chatice), temos de nos socorrer do registo escrito. A primeira referência ao palavrão é indirecta, mas muito curiosa.

No ano de 982, num documento de doação do Mosteiro de São Pedro de Roda, na zona da actual Catalunha, aparece a referência ao nome de um monte: Caralio. Nada a dizer; a semelhança ao nosso palavrão poderia ser coincidência. Ora, anos antes, num documento de 974, o mesmo monte não aparece referido pelo nome porque o nome era, dizia o autor do documento, indecoroso. Ou seja, «caralio» já não se podia dizer em certas situações. Esta foi a primeira aparição da palavra. (Veja-se aqui a fonte.)

Muito indirecta, é verdade. No entanto, desses vagos princípios, começámos a encontrar o palavrão nos registos das várias línguas românicas da Península Ibérica. Na nossa língua, a palavra aparece com frequência nas cantigas medievais, antes das navegações e afins. Se formos a https://cantigas.fcsh.unl.pt/ e pesquisarmos pela palavra, encontramos vários bons poemas dos primeiros tempos da nossa língua.

Deixo apenas um exemplo, da autoria de Fernando Esquio:

A vós, Dona abadessa,
de mim, Dom Fernand'Esquio,
estas doas vos envio,
porque sei que sodes essa
dona que as merecedes:
quatro caralhos franceses
e dous aa prioressa.

Pois sodes amiga minha
nom quer'a custa catar,
quero-vos já esto dar
ca nom tenho al tam aginha:
quatro caralhos de mesa
que me deu ũa burguesa,
dous e dous ena bainha.

Mui bem vos semelharám
ca sequer levam cordões
de senhos pares de colhões;
agora vo-los darám:
quatro caralhos asnaes,
enmanguados em coraes
com que calhedes a mam.

Sei que a língua mudou muito, mas todos percebemos bem que o poeta não estava a falar de cestos. (Um esclarecimento cultural: os ditos «caralhos franceses» são objectos que substituem os verdadeiros; vêm bem enfeitados e são oferecidos à abadessa para o que lhe aprouver.)

Avancemos. Há um facto que parece claro: a palavra já existia antes de haver um reino de Portugal. Aparece em todas as línguas românicas ibéricas e tem um primeiro registo (indirecto) no século X. Mais: em todas as referências medievais, não há qualquer ligação às navegações ou a cestos.

Dito tudo isto, de onde vem a palavra? Há várias teorias. Uma delas está registada no Dicionário da Academia, que referi acima. Viria de uma palavra latina que significava «pequeno pau». Esta é também a opinião de José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Já o etimólogo catalão Joan Coromines, no Diccionario crítico etimológico castellano e hispânico, propõe uma origem pré-romana. Não há consenso entre etimólogos, mas nenhum refere qualquer ligação ao cesto da gávea ou às navegações (portuguesas ou outras).

Se a palavra, de facto, tiver origem numa referência a um pequeno pau ou a uma estaca (não há provas), não será impossível imaginar que o termo fosse originalmente usado para designar também um pequeno mastro num barco. É apenas uma suposição: não há qualquer registo de tal uso. Repito: na escrita, a palavra aparece logo como palavrão e como referência ao órgão sexual masculino. É isso que sabemos.

Ou seja: desde o início da nossa língua (e das línguas vizinhas) temos este palavrão ao dispor.

Então de onde vem a associação do cesto da gávea ao palavrão?

Anatomia da lenda do cesto

A história do cesto e do caralho tem várias versões. Como qualquer lenda, é muito clara e impante em cada versão, mas muito variável entre versões.

Há quem afirme que o caralho é o mastro e o cesto é a casa do caralho (essa correcção é muito frequente, o que não deixa de ser curioso: há quem se afadigue a corrigir uma história errada para substituí-la por outra história errada).

Há quem diga que, pronto, é verdade que a origem do palavrão não é essa, mas os marinheiros passaram a usar o palavrão para designar o cesto (ou o mastro). Será verdade? Não sabemos (não há registos), mas se o for, já não é a explicação da origem da palavra.

Outros dizem que a história é a origem da expressão «vai para o caralho» e não da palavra em si. Também não há registos que o seja, mas aqui já estamos a ver uma lenda aflita, a fugir com o rabo à seringa. Resumo: é falsa, mas se a torcermos muito e semicerrarmos os olhos vislumbramos, lá muito ao fundo, um pedaço de verdade.

Antes de avançar: há uma associação óbvia entre as palavras «caralho», «mastro» e «verga». Todas podem ser usadas como designações do órgão sexual masculino. A questão é se a palavra «caralho» tem origem numa designação náutica. Ou seja: a questão é se a palavra começou por designar um elemento náutico (um mastro ou um cesto) e só depois o órgão sexual masculino. Não há qualquer indício de que tal seja verdade. Essa etimologia falsa aparece muito recentemente (à escala da história da língua).

Em relação à história do cesto da gávea, a primeira referência que encontro é numa página brasileira de 2005. Depois, aparece noutros locais com cada vez mais frequência.

Pesquisei em corpora da língua, em textos de etimólogos, em livros. A indicação mais antiga da história parece ser já deste século. É possível que a história já corresse em mensagens de correio electrónico, naquelas correntes pejadas de mentiras que eram habituais nos anos 90. Também é possível que tenha sido importada de Espanha, onde uma lenda parecida também se encontra aqui e ali (e, tal como cá, é também recente).

Depois de 2005, a história aparece em livros publicados, mas só depois das primeiras versões em linha. Livros mais antigos ou investigações com algum tipo de investigação etimológica minimamente cuidadosa não apresentam qualquer referência à associação entre o cesto da gávea e o palavrão. Se pesquisarmos em livros de História sobre as navegações, sobre terminologia náutica, sobre etimologia, não encontramos nada que confirme a lenda.

Lembro (já me estou a repetir): a palavra é mais antiga que as caravelas, que as navegações, que Portugal. Não sabemos qual a sua origem, mas sabemos que aparece logo como referência ao órgão sexual masculino.

Tendo em conta o espaço vazio da origem etimológica, imagino que alguém argumente: ora, se não sabemos qual a origem, pode até acontecer que seja o cesto! Ou o mastro! Até poderá ser, mas não serão nem o cesto nem o mastro das caravelas portuguesas. Enfim, se quisermos enfiar esta história recente na origem remota de uma palavra, ninguém nos impede, mas podemos fazer o mesmo com qualquer outra história que inventemos à pressão. Se eu disser que a palavra tem origem numa árvore que existia em Silves, ali por volta do ano 800, que se chamava Caralho e tinha a forma parecida com o órgão sexual masculino, tenho tantas provas disso como da associação ao cesto da gávea (ou seja, nenhumas).

Se procurarmos uma associação da palavra «caralho» com o mastro das embarcações (uma das versões com que a lenda se tenta defender), encontramos uma curiosa referência no livro Almanak Caralhal, de 1860, em que se conta a sucinta história de Frei Martinho, que «oferece heroicamente o seu caralho para mastro grande da maior nau das Índias».

É este indício que mostra que a história afinal tem um fundo de verdade? Antes pelo contrário. Note-se que a palavra é usada para designar o órgão sexual, que iria servir de mastro — a palavra não designa o mastro. Mas há algo mais importante: num livro destes, dedicado ao caralho, não haver qualquer referência à lenda é uma clara indicação de que esta é posterior. E, de facto, passariam ainda mais de 100 anos até que a história começasse a aparecer na escrita.

O que sabemos é que a palavra surge no registo escrito da língua logo com o significado que tem hoje e é usada como interjeição e palavrão. É interessante pensar que este palavrão acompanha os portugueses desde o início: é mais antigo do que o país e nunca houve nenhum português que não o conhecesse. As palavras mudam muito, mas os palavrões ficam.

Nota: este texto é uma primeira versão de um capítulo de um livro que sairá em breve.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Atlas Histórico da Escrita.