Os tempos estão a mudar.

Em variados domínios, alguns hábitos instituídos e longamente enraizados têm dado lugar a mudanças conquistadas a custo e a pulso. Tem sido assim e o desporto não escapa aos ventos de mudança, ventos que sopram de dentro e para dentro da cabeça de quem, ao longo dos anos, pensa (ou) e desenha (ou) os Jogos Olímpicos.

Chegados a 2024, uma tradição desportiva deixou de ser o que era. Uma tradição que vinha desde os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna, em 1896. Desde esse ano, até Paris2024, a competição multidesportiva saída da cabeça de Pierre de Coubertin, encerraria com a maratona masculina.

Durante a dobragem de dois séculos, foi a prova eleita para fechar com chave de ouro a glorificação do esforço humano para atingir a glória. Este domingo, em Paris, nos jogos de eleição da Igualdade de Género e paridade competitiva, a prova masculina cede a passagem aos 42,195 quilómetros percorridos pelas mulheres.

Quebra-se, com estrondo, a tradição e será a corrida de longa distância feminina a ter honras de baixar a cortina olímpica, reforçando, desta forma, a paridade, grande bandeira do evento na capital francesa.

Acontece exatamente 40 anos depois das mulheres terem pisado, pela primeira vez, estes caminhos no evento desportivo ilustrado pelos cinco anéis olímpicos e realizado a cada quatro anos.

Um significado histórico reforçado por uma homenagem à história. O percurso calcorreado pelos e pelas maratonistas revisita os passos da Grande Marcha das Mulheres a Versalhes, acontecimento determinante dentro da Revolução Francesa que viria a mudar o curso da história em França e na Europa.

Maratona feminina Paris 2024
Maratona feminina Paris 2024 New Zealand's Camille French (C) and the rest of athletes run past Eiffel Tower, as they compete in the women's marathon of the athletics event at the Paris 2024 Olympic Games in Paris on August 11, 2024. (Photo by Anne-Christine POUJOULAT / AFP) créditos: AFP or licensors

Mulheres entram nas olimpíadas por uma porta demasiado pequena

Mas já lá vamos. Recuemos a Atenas 1896 para se perceber o longo caminho percorrido até Paris2024.

Não há registo oficial de mulheres na primeira competição da Era Moderna. Contudo, uma grega, Stamatis Rovithi, intrometeu-se nesta narrativa escrita por 241 homens de 14 países, embora “tenha ficado perdida na poeira da história”, nas palavras do escritor grego Athanasios Tarasouleas.

Percorreu o itinerário da maratona, prova que revisita a lenda dos quilómetros percorridos por Fidípedes para anunciar (com o custo da vida) a vitória grega sobre tropas persas no ano 490 A.C., mas seria impedida, à porta do estádio Panathinaiko que encerra o percurso na pista.

Reza a história que respondeu à proibição com uma volta olímpica ao redor dos muros de pedra do estádio onde, na véspera, 100 mil almas transbordaram de exaltação na coroação de um novo herói, Spiridon Louis, ex-pastor de ovelhas e carteiro grego.

Não demoraria quatro anos para as mulheres entrarem na cena olímpica. Em Paris1900, fazem-no por uma porta demasiado “pequena”. É permitida a entrada somente em desportos “femininos”, adaptados às suas condições físicas, como o ténis, vela e o golfe.

A luta das mulheres pela igualdade na participação em provas desportivas continuou por anos e revestiu-se de várias formas. Nos Jogos Olímpicos e fora deles.

Um dos episódios mais célebre foi protagonizado por Roberta Gibbs, em 1966, ao completar a  mítica maratona de Boston, uma da “Big Five”.  Um feito de significado histórico e social que viria a derrubar muros feitos de preconceitos e estigmas assentes em nove palavras “as mulheres não estão fisiologicamente aptas a correr maratonas”, eternizadas na resposta da Associação Atlética de Boston ao pedido de participação endereçado por Roberta Gibbs.

Um ano mais tarde, em 1967, a atleta norte-americana teve a companhia da compatriota  Kathrine Virginia Switzer. Esta participou “disfarçada” e é, ao longo dos anos, relembrada pelo registo fotográfico de tentativa de retirada do seu número de inscrição por um dos diretores da Maratona de Boston de 1967, Jock Semple.

Após várias conquistas no campo desportivo e reconhecimento que também elas estavam habilitadas a fazer grandes distâncias – somente nos anos 70 do século XX é autorizada a participação nos 1500 m -, em 1981, em Baden-Baden, na Alemanha, o Comité Olímpico Internacional (COI) anunciou, finalmente, que a maratona feminina faria parte do reportório dos Jogos Olímpicos de Verão em Los Angeles1984.

Quase nove décadas depois dos primeiros 42,195 quilómetros percorridos só por homens, as mulheres alinhavam, pela primeira vez, na linha de partida da maratona nos Jogos Olímpicos.

A 5 de agosto, pelas ruas da "cidade dos Anjos", Joan Benoit foi a primeira entre 50 maratonistas (44 terminaram a prova) de 28 países a cortar a meta no Los Angeles Memorial Coliseu, num pódio onde entrou a portuguesa Rosa Mota, no lugar imediatamente a seguir à norueguesa, Grete Waitz. Já agora, o ouro foi para Carlos Lopes, numa madrugada que não deixou Portugal dormir.

10 mulheres homenageadas na abertura dos JO Paris2024

Estava dado um gigante passo na conquista pela igualdade. 40 anos depois, na primeira edição dos Jogos Olímpicos marcada pela paridade de género, a cerimónia de Abertura Paris 2024 começou por desvendar que algo estava prestes a mudar.

Uma emocionante homenagem a 10 mulheres que transformaram a história de França e do mundo ganhou vida em bustos e estátuas espalhadas ao longo do Sena.

Simone de Beauvoir, filósofa, escritora e símbolo do feminismo moderno, Simone Veil, sobrevivente do holocausto, política francesa, ativista pró-direito ao aborto e primeira mulher a assumir a presidência do Parlamento Europeu, Olympe de Gouges, pioneira na defesa dos direitos das mulheres, Alice Milliat, desportista e fundadora dos Jogos Internacionais das Mulheres, Gisèle Halimi, ativista política franco-tunisiana, Paulette Nardal, intelectual, jornalista e ativista pela igualdade racial, Jeanne Barret, navegadora, Louise Michel, anarquista e revolucionária, Christine de Pisan, poetisa medieval e Alice Guy, cineasta.

Nomes e rostos que perdurarão nas margens do rio que rasga a cidade das Luzes.

A grande marcha a Versalhes ao cair do pano

14 dias depois, hoje cai o pano olímpico sobre a cidade do amor e sobre Paris2024. Uma despedida feita a ver os dorsais da maratona feminina, depois de ter aplaudido uma maratona para todos, uma participação inédita de simples corredores que se inscreveram num duplo percurso, 10 e do original da maratona.

Homenagem marcada a um momento-chave da história de França e da Revolução Francesa, a Marcha das Mulheres a Versalhes, a 5 de outubro de 1789.

A “revolta” nascida nos mercados parisienses, liderada por mulheres, viria a estar na origem da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e desferiu um golpe de misericórdia na monarquia absolutista francesa (Ancien Régime).

Em luta contra a escassez de alimentos, entre seis a sete mil mulheres, acompanhadas por uma guarda pretoriana de 15 mil militares liderada pelo Marquês de Lafayette, marcharam do Hotel de Ville (câmara municipal) até ao Palácio de Versalhes exigindo ao rei Luís XVI que regressasse a Paris. Exigiram igualmente pão e mudanças e voltaram à capital francesa de mão cheias.

Hoje, 235 anos depois, o mesmo percurso será recriado. Partida de Hotel de Ville, no centro de Paris, até Versalhes, revistando icónicos monumentos e atrações parisienses como a Torre Eiffel, Place Vendôme, Museu do Louvre, a Catedral de Notre-Dame, Jardins das Tulherias, Place de la Concorde, Grand Palais, pelos Jardins do Trocadero e final Les Invalides.

Será feito a correr. Os homens já percorreram o trajeto e  estendem a passadeira à competição feminina.

Paris2024: Maratona - Susana Santos
Paris2024: Maratona - Susana Santos A corredora Susana Santos, no final da prova da Maratona, a contar para os Jogos Olímpicos de Paris, que terminam hoje, em Paris, França, 11 de agosto de 2024. JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA créditos: Lusa

Susana Santos, a portuguesa que marchou sobre Paris, elegeu a mãe como heroína

A Susana Santos Godinho, única portuguesa na maratona, coube as honras nacionais de marchar sobre Paris.

No meio de homenagens às mulheres francesas, vira-se para dentro da sua família. “A minha principal heroína é a minha mãe, porque foi ela que me incentivou e que me levou para o desporto. Por isso, sem dúvida, é que ela é a principal”, reforça.

“Ela nunca foi atleta, mas gostava de desporto e muito novinha, acho que foi com seis anos de idade, pôs-me na natação. E depois, mais tarde é que vim para o atletismo”, tendo tudo começado “na escola, em Gaia”, recorda em conversa com o SAPO24, ainda em solo português antes de embarcar rumo a Paris.

Para além da admiração de mãe, outras mulheres entram no radar da maratonista do Recreio Desportivo de Águeda. “Admiro por falarem, porque não é do meu tempo, a Fernanda Ribeiro”, referencia. “Mais atual, mas que já estão em fim de carreira, a Jéssica Augusta, a Dulce Félix e a Sara Moreira. Consegui acompanhar a carreira delas. Da Fernanda Ribeiro foi mais pelo que ouvi e do que contavam, não é do meu tempo, não me lembro de a ver correr”, conta.

Estreia-se nos Jogos Olímpicos e faz nas ruas da capital francesa a terceira maratona da carreira. “No ano passado, em dezembro, na Maratona de Valência, consegui os tempos para os Jogos Olímpicos (2:25,35 horas)”, exclamou. “Foi a minha segunda maratona (seis meses antes tinha feito a prova de Sevilha). Paris será a terceira”, reforçou a maratonista de 32 anos, ex-atleta de corta-mato e estrada que já vestiu as cores do Benfica, Sporting e Feirense.

Fisioterapeuta de profissão não considera ter chegado tarde a prova que põe à prova a resiliência do desportista. “Foi o caminho perfeito para mim. Pela vida que tinha, por causa da faculdade (fisioterapia) era impensável pensar em maratonas”, assume.

A corrida começa a entrar no imaginário após a mudança de trabalho. “Antes, trabalhava numa clínica e não conseguia a flexibilidade de horário que tenho agora. Vim para a Maia, troquei de trabalho, só faço domicílios e não estou 8 horas numa clínica, porque se estivesse, não conseguia treinar para uma maratona”, garante. Uma mudança que lhe permitiu os exigentes e obrigatórios treinos bi-diários.

“Mas o objetivo era treinar, não era pensar ir aos Jogos Olímpicos. Queria fazer uma maratona para experimentar, para vivenciar a experiência”, salientou.

Susana Santos terminou em 57.lugar com o tempo de 2:35.57 horas.

O plano para desfilar nas ruas de Paris começou “há 3 meses” e pisará pela primeira vez as ruas que ligam o Hotel de Ville ao Palácio de Versalhes e depois ao Les Invalides. “Não fiz o percurso, vi partes, é muito difícil e duro, para mim e é para as outras e as subidas são as maiores dificuldades que vamos encontrar”, refere.

O objetivo para a maratona olímpica estava bem alinhado na cabeça da atleta. “Não faz sentido dizer que vou lutar por medalhas, não vou lutar por tempos, mas vou lutar por lugares”, promete. “Acho difícil pensar em marcas e o objetivo é fazer o melhor lugar possível”, reforçou.