Nesse tempo antes do tempo é provável que os humanos caçadores-recolectores não estivessem mal alimentados, uma vez que recursos e população se equilibravam. Os nossos avós eram uns matulões robustos. Como não padeciam das doenças que chegaram com o assentamento em povoados do Neolítico, a fase mais recente da «Idade da Pedra», tinham vidas brutas, bruscas e breves. Caçavam e comiam, eram caçados e comidos. O objetivo de cada dia seria qualquer coisa como «chegar vivo ao anoitecer» e não se pense que um tal lema pudesse ser despropositado, pois que há vestígios evidentes de espiritualidade.

Viveu-se uma glaciação nestes dias longínquos. Portugal e Espanha estavam cobertos de neve e gelo durante grande parte do ano e muitas montanhas lusas brilhavam com neves eternas. O espetacular Vale do Zêzere, que tomou forma há cerca de 30 mil anos, é um exemplo tremendo do que era o clima da nossa zona. Nas academias, averiguando os indicadores, compara-se o clima da Península Ibérica da altura com o da Escandinávia atual.

Era um mundo inóspito com vegetação mais escassa e menos generosa. Perdiam-se vidas em caçadas e escaramuças; os partos eram arriscados, a fertilidade era provavelmente baixa e o infanticídio terá sido praticado. Estes fatores mantiveram os números populacionais muito estabilizados. A arqueologia e a paleopatologia dão-nos vislumbres de antepassados disformes, torturados por artrites e tolhidos por aleijões, e ainda de membros partidos em acidentes e tratados de forma horrorosa.

E realmente com o neolítico tudo muda. Sucedeu naquele boomerang que conhecemos na escola e que se chama Crescente Fértil. A este momento de viragem, que durou um par de milénios, chama-se igualmente revolução agrária. A superfície terrestre aqueceu, extinguiram-se muitos animais de grande porte e a fauna passou a ser mais parecida com a que temos agora. Surge a lavoura e a domesticação de animais. Há mais tempo disponível por não ser necessário andar tanto tempo em caçadas e começam a desenvolver-se artes um pouco mais sofisticadas, como a cerâmica. Armazenam-se alimentos e a primeira face do que pode ser chamada uma civilização mostra-se à luz.

No princípio, também eram as pandemias

A situação teve um revés: à medida que os humanos iniciavam os seus assentamentos em povoados, tornavam-se cada vez mais colonizados por criaturas capazes de lhes fazer mal, incluindo parasitas e agentes patogénicos. Houve vermes, pulgas, carrapatos e um ror de artrópodes. Também houve outros microrganismos, como bactérias, vírus e protozoários. Os seus ritmos elevados de reprodução dentro dos hospedeiros originavam doenças graves, mas, como se se tratasse de uma compensação, concediam aos sobreviventes imunidade contra reinfeções.

A história é conhecida e dura até aos nossos dias. As pandemias passaram a fazer parte do quotidiano e saímos recentemente de um período que, comparado com as épocas que couberam aos avós dos avós dos avós dos nossos avós, nem sequer se pode chamar catastrófico. Houve sempre tragédias e a vida nunca foi um passeio no parque. Ou antes, foi muitas vezes uma espécie de «passeio no Parque Jurássico», apesar de humanos e dinossauros jamais terem coexistido.

O gelo, as caçadas, a caminhada constante e a morte quase sempre violenta foram os atributos do Paleolítico Superior. Foi a época das grutas de Lascaux e de Altamira, mas também de Foz Côa e do Lapedo.

Havia espiritualidade e as pinturas são um exemplo ilustrado. Mexia-se muito pouco na natureza, com a exceção da domesticação do cão ou da transformação do solo através de queimadas localizadas para que as plantas se pudessem alimentar de cinzas florestais. À escala global estima-se que a população rondasse os dez milhões de habitantes. Sim, a população atual de Portugal dispersa pelo mundo inteiro. Na Península Ibéria viveriam umas 50 mil pessoas.

Este modo de vida impunha uma baixa densidade populacional, uma vez que consistia em obter o sustento diretamente a partir da natureza. Devido ao seu pequeno número, o impacto destes caçadores-recolectores permaneceu limitado ao seu ambiente. Como sucede hoje em dia com a pesca, talvez a última área onde ainda praticamos «a arte de recolher» de forma significativa, é provável que os nossos ancestrais tenham contribuído para o desaparecimento de espécies devido à sua habilidade para a caça e para uma espécie de comércio rudimentar – as trocas de bem por bem e a malícia eram moeda corrente antes da própria moeda.

No meio deste vendaval de neve e gelo houve sempre zonas idílicas. As grutas de Lascaux e Altamira, devido ao facto de serem precisamente cavidades, terão albergado umas dezenas de humanos durante várias gerações. Havia calor, conforto e segurança; não havia razões para sair nem para ter alarme.

Polícia identifica suspeitos de vandalismo de gravura do Parque Arqueológico do Vale do Côa
Polícia identifica suspeitos de vandalismo de gravura do Parque Arqueológico do Vale do Côa Gravuras rupestres, datadas do paleolítico superior, gravadas nas rochas xistosas do Vale do Côa, a 16 de dezembro de 1994. Achado em 1994, o complexo das gravuras rupestres do Vale do Côa, é o maior complexo de gravuras rupestres gravado ao ar livre, conhecido, do mundo. As figuras mais representadas são os cavalos e os bovídeos. Marcos Borga / Lusa créditos: SAPO24

Regresso ao Vale do Côa

Também se abrigaram humanos no vale do Côa – o parque arqueológico é o maior conjunto mundial de arte paleolítica ao ar livre. Apesar dos 20 mil anos decorridos, a orografia era muito semelhante à atual. Surpreendentemente, o rio apresentava mais ou menos a mesma cota, pelo que estes antepassados viram uma paisagem similar à que podemos apreciar agora no bendito parque. Hoje, como na altura, o vale era abrigado das terras geladas do planalto de Miranda e de Castela ou dos vendavais de neve da Guarda. Se são terras frias nos nossos dias, numa idade do gelo nem as conseguimos imaginar.

Um vale quentinho e soalheiro, alimentado por um curso de água e ladeado por paredes em xisto mesmo boas para desenhar. Se não era isto o paraíso, o que era então?

Um vale quentinho e soalheiro, alimentado por um curso de água e ladeado por paredes em xisto mesmo boas para desenhar. Se não era isto o paraíso, o que era então? Serviu para descansar um pouco do nomadismo e ter-se-á transformado numa espécie de hub do paleolítico, servindo tanto de habitação quase permanente como de local de repouso para viandantes.

Quem quiser saber mais tem documentação e os fantásticos guias do parque, que conseguem fazer visitas guiadas a crianças durante duas ou três horas seguidas sem as maçar um pouco. Acrescente-se que levar uma criança ao vale do Côa significa uma apropriação muito mais simbólica das gravuras e também muito mais rápida. Se se abusa muito do adjetivo «inesquecível», levar os nossos miúdos ao parque dá-lhe o verdadeiro substrato.

Em 1994, após décadas de achados não confirmados, deu-se a entrada no cânone, com a estampilha da arqueologia. As figuras não sabem nadar, gritou-se. Hoje em dia talvez se clamasse Je Suis Indiana Jones, mas os tempos são outros e muito muda em 30 anos. A barragem ficou felizmente em águas de bacalhau e uma ida ao local garante a viagem no tempo que não é cenário.

PORTUGAL - VALE DO LAPEDO
PORTUGAL - VALE DO LAPEDO créditos: PAULO CUNHA/LUSA

Quatro anos depois do Côa foi descoberta a criança do Lapedo, velhinha de 29 mil anos. É a única sepultura do Paleolítico Superior existente na Península Ibérica. Novamente um vale, proteção contra as inclemências de uma Leiria tão fria como Helsínquia e lar propício a umas poucas famílias.

Novamente os guias: o Centro de Interpretação Abrigo do Lagar velho tem guias que nos levam com esmero pelas passadas dos que viveram tanto tempo antes de nós. Vemos relíquias com 29 mil anos e dificilmente contemos a emoção quando vemos finalmente os restos mortais da criança que viveu cinco anos no Paleolítico. Se tivesse sobrevivido um pouco mais seria quase certamente um ancestral direto de muitos de nós.