Na semana passada, a ministra da Justiça rejeitou estar ligada a qualquer “campanha orquestrada” contra a procuradora-geral da República, após Lucília Gago ter denunciado essa situação na entrevista à RTP1 e implicado Rita Alarcão Júdice num ataque ao Ministério Público (MP).

Em entrevista ao Público e à Rádio Renascença, o ex-procurador-geral da República José Narciso Cunha Rodrigues diz que o termo em causa é antes a "agenda setting", ou seja, "aquilo que eu chamaria de espiral de silêncio, em que até um certo momento ninguém fala de ninguém e a partir daí todos replicam as mesmas coisas" na comunicação social.

Contudo, o ex-procurador defende que tal acontece "porque há problemas, obviamente. Há factos que merecem ser levados até ao público e porque esta matéria é essencial para a democracia e, portanto, para a convivência e para a paz social".

Além disso, defende que o próprio Ministério Público tem de ser escrutinado. "O primeiro escrutínio que é feito ao Ministério Público é pelos juízes. Depois a comunicação social tem um papel também importante para comentar, para explicar e, por vezes, para criticar decisões que tomou o Ministério Público".

Todavia, José Narciso Cunha Rodrigues recusa que exista ingerência política no trabalho do Ministério Público. "A ingerência política é uma coisa que nós não podemos ver nas atuais circunstâncias. É evidente que os políticos têm um papel importante, logo por ser a Assembleia da República, que legisla sobre o Ministério Público e sobre a justiça. E é natural também que algumas decisões colidam com aquilo que é a opinião de agentes políticos. Mas todo este quadro resulta da lei".

"Nos últimos anos, houve intervenções recorrentes do poder político no sentido de judicializar aspetos importantes da vida política e pública. Depois, quando a justiça intervém, os políticos acham que é uma intromissão na política", referiu ainda.

Questionado sobre o facto de haver políticos sob escuta há vários anos, o ex-procurador frisa que "o país tem um problema com as escutas. Os meios tecnológicos evoluíram de tal maneira que os agentes da justiça se sentiram atraídos para, numa linguagem comum, investigar sentados".

"As escutas são um meio excecional de investigação. A escuta é um meio de adquirir meios de prova. A jurisprudência agora entende que ele próprio é uma prova", nota.

"Não era essa a finalidade inicial. Mas o que acontece com as escutas é que elas têm a tendência para expandir no tempo e no espaço. Deixam de ser escutadas só as pessoas que têm a ver com o processo, mas a família, os amigos e pessoas que não têm nada a ver com o assunto. Penso é uma matéria que hoje lesa direitos fundamentais das pessoas e que devia ser analisada em profundidade", afirma ainda.

Assim, admite que por vezes possam existir excessos. "É evidente que só pode haver escutas com autorização dos juízes e geralmente com promoção do Ministério Público. Todos os meios intrusivos da vida privada e da autonomia individual devem ser usados com parcimónia e segundo o princípio da proporcionalidade. No meu tempo havia muito menos escutas porque não havia meios para fazer escutas. Eu sempre fui muito prudente nessa área porque a escuta é um meio invasivo, intrusivo da vida privada e da própria capacidade de as pessoas agirem e interagirem sem medo e sem receio".

Nesse sentido, "o procurador-geral da República tem exatamente a função de instruir, de dirigir a magistratura do Ministério Público e de atuar quanto aos meios que podem ser utilizados ou devem ser utilizados. Nem todos os meios que são legais podem ser utilizados de uma forma que eu diria não proporcional".