“O racismo não é só aquele que mata ou bate. É institucional, sistemático e perpetua as diferenças. Continuamos a empurrar os alunos afrodescendentes para o ensino profissional. Continuamos a atirar as pessoas para as periferias das cidades, em bairros sociais onde já chove dentro das casas antes de serem inauguradas, numa estigmatização sistemática”, afirmou o veterano dirigente do SOS Racismo José Falcão.

A investigadora Silvia Maeso, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, disse à Lusa que o assassínio do cabo-verdiano, que tinha 27 anos, foi “como uma chamada de atenção, pelo repúdio que causou”, mas salienta que em Portugal e na Europa “continua a analisar-se o racismo como uma exceção, os grupos de extrema-direita são olhados como uma anomalia, o que é problemático porque impede um olhar para o racismo como estruturante”.

“Sempre que há um crime destes, as declarações sobre ele são de indignação, mas nunca se analisa como se fosse algo que, de facto, existe na cultura. É como se fosse uma coisa que não nos diz respeito, continua a ser silenciado. Há um reconhecimento [do racismo], mas continua a ser ambivalente”, considerou.

Em 1995, na madrugada de 10 para 11 de junho, um grupo de cerca de 50 ‘cabeças rapadas’ invadiu as ruas do Bairro Alto, em Lisboa, e atacou com violência várias pessoas. Onze foram julgados e condenados por homicídio, seis por agressões e dois foram a julgamento, mas absolvidos.

“Foi um caso importante para chamar atenção. Não houve impunidade porque batalhámos bastante para que não houvesse e a morte do Alcindo Monteiro travou um bocadinho a onda de violência” que já vinha dos anos 80, referiu José Falcão.

Vinte cinco anos depois, os assassinos já estão em liberdade e novamente a contas com a justiça: em maio deste ano, o Ministério Público constituiu como arguidos 37 neonazis suspeitos de agressões brutais e tentativas de homicídio contra afrodescendentes e homossexuais, entre os quais se contam cinco dos condenados pela morte de Alcindo Monteiro.

José Falcão aponta a “coerência” destes extremistas, notando que “não houve assim tanta alteração”, apesar da lei contra a discriminação racial aprovada em 1999.

“Eles estão aí à mesma”, afirma, lamentando a “normalização da violência” e do discurso que separa e estigmatiza raças e que se espalha mesmo às autoridades policiais, com atos violentos como os que se verificaram em 2015 na esquadra de Alfragide, em que oito agentes da PSP foram condenados por sequestro e ofensas à integridade física a um grupo de jovens negros do bairro da Cova da Moura.

“O que é o Movimento Zero? Basta ver a receção que André Ventura teve na manifestação dos polícias”, afirmou, aludindo ao deputado eleito do partido Chega, que defendeu ideias como o confinamento obrigatório da comunidade cigana por causa da pandemia e sugeriu que a deputada Joacine Katar Moreira, eleita pelo Livre, fosse para “a sua terra” quando esta defendeu a devolução de obras de arte às ex-colónias portuguesas de onde tivessem sido retiradas.

Silvia Maeso defende que, “desde os anos 80, em Portugal e no resto da Europa, sempre se usou a pouca representatividade [das ideias racistas] em termos de votos de partidos como a Frente Nacional, em França, ou a AfD, na Alemanha, para justificar um discurso de negação”.

Olha-se “para o extremismo dos ‘skins’, a sua exaltação nacionalista, a ideia de expulsar todos as pessoas que não são brancas e não se estabelece um fio condutor com a identidade nacional, perpetua-se um discurso paternalista sobre o colonialismo português, o lusotropicalismo”, considerou.

“Mexemo-nos perante um discurso explicitamente racista, sem dúvidas de interpretação, mas esse discurso não é um exclusivo de um partido como o Chega. Faço investigação em Portugal há 13 anos e ouvi vezes infinitas a ideia de que os ciganos não querem trabalhar e vivem dos subsídios do Estado, isto de pessoas que nunca votariam no Chega”.

Silvia Maeso considera que na investigação académica sobre o racismo é preciso deixar de o entender como “uma excecionalidade”.

“Há pouca análise, há sempre uma exotização e problematização do outro, no que toca às pessoas racializadas. O que é preciso é um olhar sobre as instituições, como funcionam e identificar como se reproduz o racismo no quotidiano, mesmo as políticas que não têm um discurso explícito”, afirmou.