Introdução

Samuel

Se estivéssemos a gravar um episódio do Assim ou Assado, eu agora diria “Olá, pessoal!” ou ainda “Como é que é?”. Mas aqui estou preso nas páginas de um livro, não sei bem o que dizer...

Enfim, digo na mesma: “Olá, pessoal!”. Estou aqui, dentro de um livro, com o nosso Prof. Marco Neves, que vem falar comigo sobre a língua portuguesa, uma das minhas paixões — e a paixão também do Marco (vou deixar cair o “Prof.” agora, que isto não é uma aula).

No meu caso, é a minha paixão porque é o material que uso para a minha música. Estou sempre a pensar nas palavras da nossa língua, às vezes passo mesmo semanas a reflectir sobre um só verso, a tentar perceber qual é a melhor palavra para aquele sítio em particular.

É Desta Que Leio Isto: Em outubro recebemos Capicua

No seu passaporte consta Ana Matos Fernandes, mas Portugal e o Mundo conhecem-na principalmente pelo seu nome artístico. Nascida e criada no Porto, Capicua é um dos grandes nomes da música rap nacional, sendo conhecida pelas suas letras ora emotivas, ora politicamente engajadas, com frequência unindo essas duas características.

Além de já ter lançado duas mixtapes ("Capicua Goes Preemo", 2008, e "Capicua Goes West", 2013) e três álbuns em nome próprio e um disco de remisturas ("Capicua", 2o12, "Sereia Louca", 2014, "Medusa", 2015 e "Madrepérola", 2020), a rapper integrou também o projeto colaborativo luso-brasileiro Lingua Franca, com os seus congéneres Emicida, Rael e Valete.

A sua relação com a palavra escrita vai além das rimas que escreve para os seus projetos, assinando letras para intérpretes como Gisela João, Aline Frazão, Ana Bacalhau, Camané e Clã e tendo uma formação em Sociologia, no ISCTE, e um doutoramento em Geografia Humana, tirado em Barcelona.

Os livros discutidos neste encontro serão "Aquário", coletânea de algumas das suas crónicas, e "A Invenção Ocasional", de Elena Ferrante.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Além disso, pode ficar a par de tudo o que acontece no clube de leitura através deste link.

Pois agora aceitei esta ideia de escrever prosa e precisamente sobre este material. Não é fácil, mas o tema é tão importante que não hesitei. Vamos escrever sobre os temas do nosso podcast, que eu criei para o meu projecto TV Chelas. O livro, no entanto, não é uma mera transcrição — gostava que fosse útil e nos levasse a pensar sobre a língua.

Conversámos muito sobre o formato deste livro e acabámos por decidir escrevê-lo em forma de perguntas e respostas, porque é disso que é feito o podcast: eu tenho perguntas e procuro respostas. Foi por isso que fui procurar quem me pudesse ajudar a esclarecê-las.

Marco

Todos nós temos muitas perguntas sobre o português. Há quem pense que a língua é o reduto dos gramáticos e dos linguistas, mas a língua é de todos. O problema é que nem sempre a sabemos analisar, não percebemos bem como olhar e como encarar este bicho selvagem.

Ou melhor, alguns de nós sabem-no fazer muito bem, como o Samuel, que está sempre a tentar pôr este tigre que é a língua a cantar, mas o que não sabemos é explicá-lo. Foi para mim um desafio muito interessante conversar durante tantos episódios com alguém que usa a língua como material artístico; do meu lado, olho para a língua como os biólogos olham para o corpo humano: tenho curiosidade em saber como funciona. Agora, confesso: também gosto muito de aproveitar a língua como material artístico. Não tenho talento como o Samuel, mas gosto de ler e gosto de ouvir.

Quando falamos da língua, a maior parte das pessoas quer saber o que pode ou não fazer. Espero que este nosso livro seja útil. A resposta é, muitas vezes, um pouco mais complicada do que parece. Em muitos casos, podemos fazer assim — mas também podemos fazer assado. Muitas vezes, é precisamente quando temos dúvidas que a língua, lá atrás, nos sussurra: ora, se não sabes se podes dizer desta maneira ou doutra é porque talvez possas dizer das duas. Muitos têm medo. Preferem a clareza dos limites, o que compreendo, mas às vezes a língua permite arriscar — mas para isso, temos de ouvir com atenção, ler muito, aproveitar tudo o que existe nesta língua, para depois arriscarmos.

É com estas várias opções que a língua nos dá espaço para a arte, para a brincadeira, para o inesperado. E, nisso, o Samuel é mestre.

I. O prefixo de Camões

Samuel

O tema para o primeiro episódio do nosso podcast apareceu-me à frente há uns anos, quando estava a criar uma música com o Silva o Sentinela, um grande poeta. O título era Vale do Silêncio. Ele chegou-se ao pé de mim e apontou para esta parte da letra:

Eu nunca fui um postal, mas vou-me pôr a compor e se um dia eu for, eu serei ancestral. De um chavalo que dá valor ao que escreve no caderno e ele vai querer amostrá-lo

E disse-me: “Samuel, a letra está muito boa, mas... Mas ‘amostrar’ não existe!”.

Pois seria mesmo assim? Fartei-me de investigar e, na altura, fiquei convencido de que “amostrar” existe sim senhora. Mas, claro, quis conversar com quem estuda estas questões e acabei por começar o nosso programa precisamente por esta pergunta.

Acabámos por falar de Camões, que é quase o santo padroeiro da língua — só que não era santo, claro está. Tinha mesmo de estar no título deste primeiro capítulo porque o tema do nosso livro e do nosso podcast são as opções que a língua nos dá para podermos usá-la como material artístico.

1. “Mostrar” ou “amostrar”?

O verbo “amostrar” sem dúvida que existe. Significa várias coisas, entre elas “criar uma amostra”. Não é muito usado com esse sentido, mas está nos dicionários e é, nesse caso, bastante formal. É um termo técnico, aliás.

O problema existe com o verbo “amostrar” com o mesmo sentido de “mostrar”, como quando dizemos “amostra-me lá isso!” (enfim, entre cientistas, se calhar, até é possível imaginar um diálogo em que esta frase é dita com o sentido de “criar amostra”, mas vamos pensar no uso mais popular). Neste caso, muitas pessoas torcem o nariz. Acontece o mesmo com palavras como “assentar”, “amandar”, entre outras.

Estes verbos usam uma partícula inicial denominada “prótese” pelos linguistas. É uma sílaba acrescentada no início da palavra sem lhe alterar o significado. Em português, é uma tendência muito antiga, que encontramos em diversas palavras. Algumas dessas palavras fazem parte do chamado padrão da língua. Outras são consideradas palavras populares.

Por exemplo, a palavra “atum” tem origem numa palavra latina que não começava por “a”. Esta primeira sílaba acrescentou-se à língua a certa altura e hoje já não usamos a versão sem prótese. É apenas um exemplo: há muitas palavras assim.

Portanto, “amostrar” segue as tendências de formação de palavras do português — o único problema é ser uma palavra considerada popular. Não é a prótese em si que a torna mais ou menos adequada, mais ou menos correcta.

Há outras palavras assim, como “alevantar”...

Assim ou Assado
Assim ou Assado créditos: Oficina do Livro

Livro: "Assim ou Assado - 100 Perguntas sobre a Língua Portuguesa"

Autor: Sam The Kid e Marco Neves

Editora: Oficina do Livro

Publicação: 11 de outubro

Preço: 13,95€

2. “Alevantar” não é erro?

Curiosamente, mesmo palavras que hoje são consideradas muito informais, como “alevantar”, estão presentes em textos de grandes escritores. Camões escreveu: “outro valor mais alto se alevanta”, n’Os Lusíadas. Se Camões usa, quem somos nós para proibi-la?

São verbos, no entanto, que ficaram circunscritos ao registo informal (já veremos o que é isso). São usados em contextos mais informais e não tanto na escrita ou num discurso. A palavra não mudou, mas os contextos de uso mudaram.

Em suma: erro não é — mas pode ser inadequado em situações formais.

3. A sílaba inicial de “alevantar” não é redundante?

Há quem olhe para estas sílabas e pense: mas não são necessárias! São redundantes! Ora, a redundância faz parte da língua. Há muitos pontos da nossa gramática e léxico em que a mesma informação se repete. No caso da gramática, a concordância em género e número é um tipo de redundância obrigatória. No caso do léxico, não só a língua tem mais recursos do que aqueles de que necessita para transmitir a informação (temos sinónimos, palavras que se sobrepõem...), como as peças de que o léxico se compõe também se repetem ou são usadas para lá do que a lógica estrita implicaria. A prótese é um desses casos. Quer dizer que é inútil? Nem por isso: serve para dar mais corpo à palavra, serve para garantir que a palavra é bem entendida, serve para que a palavra encaixe num verso, por exemplo. E mesmo que seja estritamente desnecessária, a prótese foi concebida por quem cria a língua. As línguas são diferentes precisamente porque não seguem uma lógica estrita.

A língua não é planeada antes de ser usada. A língua surge do próprio uso e esse uso não se rege apenas por questões de eficiência. A eficiência é um dos factores, mas há outros, como a capacidade típica dos sistemas criados espontaneamente de transmitir informação mesmo numa situação de ruído. As redundâncias são essenciais para qualquer sistema linguístico natural.

4. O que é um prefixo?

No episódio, usámos a palavra “prefixo” de forma genérica. Mas, de forma rigorosa, uma prótese não é um prefixo: um prefixo altera o significado da palavra; a prótese é um fenómeno fonético que não altera o significado da palavra.

Um prefixo é uma peça para construir palavras com um ou mais significados. É um tipo de morfema. Se adicionarmos “in” a “feliz”, ficamos com “infeliz”. Aquele prefixo costuma ter um significado de negação da raiz da palavra.

Muitos morfemas têm vários significados, tal como acontece com as palavras — é algo naturalíssimo.