1

Um objeto do passado

Ansiosa por chegar a casa, uma jovem destemida atalhou por um beco escuro e nauseabundo, pouco recomendado a quem queria manter-se afastado de problemas.

Ao dobrar a esquina, apertou a máscara do rosto e estugou o passo. Sabia que, naquela zona do Setor 47, era preciso ter os sentidos bem apurados pelo que procurou afastar da mente o duche fresco de descontaminação que a aguardava e concentrar-se no caminho que ainda tinha por fazer. Foi nessa altura que ouviu, atrás de si, o som ténue de passos vacilantes.

Se é um ladrão, é ainda um novato. Alguém mais experiente não faria barulho.

Precavida, estreitou os límpidos olhos azuis, retesou os músculos e preparou-se para a eventualidade de ter de se defender.

Não pode ser um bandido, procurou convencer-se. Toda a gente me conhece neste setor. E ninguém teria coragem de assaltar uma Mãe.

Ao mesmo tempo que exalava um suspiro de alívio, a cadência dos passos que a perseguiam aumentou. Como resposta, a jovem começou a correr. Não para fugir, mas para perceber as intenções da pessoa que vinha atrás de si. E quando o seu perseguidor acelerou o passo, ela não teve dúvidas de que a queriam assaltar.

Logo hoje que o dia foi tão cansativo... Sempre que há chuvas ácidas no Exterior, temos filtros da cúpula a avariar.

Resignada, rodou de repente sobre os calcanhares para encarar a criatura que a seguia. Era um encapuzado pardacento e entroncado, cujo rosto adornado com uma máscara enegrecida só deixava de fora os olhos trémulos e suplicantes. Aliviada, constatou que aqueles não eram os olhos de um bandido. Como tal, não seria necessário aplicar os conhecimentos de artes marciais que aprendera nas escolas do Governo Mundial. Contudo, ao ver uma mão trémula alcançar uma arma com uma pequena lâmina não hesitou, baixando-se rapidamente para apoiar as mãos no solo, de forma a poder usar as pernas para desferir um pontapé certeiro nos membros inferiores do meliante.

O som da queda ecoou pelo beco bafiento, ao qual se seguiu o inconfundível estalido de uma cana de nariz a ser rachada. De cotovelo em riste, uma jovem franzina, de pequena estatura e enorme coragem, tirou a pequena faca da mão do seu perseguidor, cujos urros lancinantes reverberavam pelo beco. — Como te chamas? — perguntou, num tom ríspido, autoritário e desprovido de qualquer remorso.

Como resposta, o candidato a ladrão limitou-se a gemer e a choramingar, sem nunca largar o nariz ensanguentado. Por isso, a jovem teve de lhe dar um beliscão.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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— Não gosto de me repetir. Qual é o teu nome?

— Louis — replicou o assaltante, lamurioso. — Tu agrediste-me!

— Se não o fizesse, atacavas-me. Ou ias usar essa faca para coçares as costas? — perguntou, enquanto tamborilava com aparente despreocupação a pequena arma branca por entre os dedos.

Louis emudeceu. Tinha demasiadas dores para falar.

— Porque me assaltaste? É óbvio que não és competente nesta área. Louis voltou a não responder. No entanto, a jovem reparou que ele baixara os olhos. Não a conseguia encarar.

— Não és um bom ladrão e também não gostas de roubar. Depreendo, portanto, que foste obrigado a isso — replicou, ao tirar uma pequena bolsa do manto. — Não precisas de me contar a tua história. Todos temos os nossos problemas neste mundo. Só te peço que não voltes a roubar. Se me atacasses com esta faca, a minha ferida acabaria por sarar, mas a tua iria atormentar-te até ao fim dos teus dias. Os remorsos podem durar uma vida inteira.

Ao ver que aquela estranha mulher lhe depositava um bloco inteiro com senhas de refeição na mão, Louis não conseguiu evitar que as lágrimas lhe molhassem a máscara. Não se conseguia lembrar da última vez que não tivera fome. A sua benfeitora já lhe tinha virado costas para continuar o seu caminho, quando o rapaz gritou:

— A minha irmã mais velha foi vítima da pandemia do Setor 24. E eu deixei de conseguir pagar a renda da casa. Arranjei emprego há pouco tempo no 47, mas quando cá cheguei era tudo um esquema e...

— Isso não é desculpa para assaltares as pessoas — interrompeu-o a jovem. — Mas se chegaste há pouco tempo é normal que não me conheças: eu sou uma Mãe.

Debaixo da máscara encardida, os olhos amedrontados abriram-se de espanto.

— Não sabia que era uma Mãe! Rogo-lhe que me perdoe — pediu Louis, de cabeça baixa e joelho no chão. — Nunca poderia adivinhar! Ainda é tão nova...

— Tenho vinte e dois anos. Já tenho idade suficiente para tentar que este mundo seja um bocadinho melhor — disse a Mãe, endereçando-lhe um pequeno cubo branco. — Este é o meu cartão. Trabalho na GreenAir. Passa lá amanhã bem cedo e pergunta por mim. Vou arranjar-te um trabalho na equipa de manutenção dos filtros.

Embasbacado com uma bondade que nunca tinha visto, Louis carregou no botão circular do cubo, aparecendo um holograma com a imagem de uma bonita mulher de longos cabelos negros e olhos claros.

— O seu nome é Margarida Travis — sussurrou ao ler o texto que acompanhava a imagem holográfica.

— Exato. E garanto-te que, da próxima vez que tentares roubar alguém, não te escapas apenas com um nariz partido.

*

AO CHEGAR, FINALMENTE, A CASA, MARGARIDA ENCONTROU um sobrescrito amarelado na soleira da porta. Não se lembrava de alguma vez ter recebido uma carta. Afinal de contas, em 2099 já ninguém utilizava essa forma de comunicação. Desconfiada, pegou no objeto digno de um filme antigo, constatando que lhe estava endereçado. Ficou petrificada. Sabia que as cartas apenas eram usadas no submundo, para transmitir informações confidenciais e potencialmente subversivas. Eram a única forma de comunicação que não era controlada pelo Governo Mundial.

Com o coração aos pulos e os dedos trémulos, rasgou o envelope. E quando viu o nome do emissor sentiu a consciência a querer fugir-lhe. Sofregamente, leu o conteúdo da missiva e, ao terminar, tinha os olhos azuis marejados de lágrimas e o peito inflamado com a centelha de luz que o invadiu.

Pela primeira vez em muito tempo, teve a ilusão de que o futuro poderia ser risonho.

A-a... a Academia da Esperança. Existe mesmo!

2

O bem mais valioso da Humanidade

Uma trombeta desafinada ecoou nos altifalantes do fato de refrigeração, anunciando que o dia de trabalho tinha acabado.

Margarida suspirou de alívio e limpou o suor que lhe escorria pela fronte.

A máscara plastificada, que lhe adornava o rosto e deixava a descoberto apenas os olhos, estava encharcada e os poros que polvilhavam a sua pele láctea guinchavam em agonia devido ao calor.

Embora aquele dia estivesse ameno — afinal de contas, as temperaturas nem chegavam aos 50 graus —, a jovem engenheira da GreenAir passara algumas horas na cúpula do Setor 47 a fiscalizar os filtros de ar que protegiam os cidadãos daquele aglomerado habitacional. Quando saiu da cúpula, Margarida foi para o duche purificador, usando a água fria dos dois minutos a que tinha direito para limpar as impurezas do corpo e da mente.

Nos dias em que tinha de subir até ao ponto mais alto do setor, o que mais custava não eram as temperaturas abrasadoras. Era o facto de que, dali de cima, conseguia ver o céu. O tenebroso e sombrio manto que cobria o planeta e que era tão escuro e denso que tornava impossível distinguir o dia da noite. Margarida sentia que aquele céu era o reflexo da Humanidade. Escuro e frio. Ao olhar para ele, não conseguia deixar de pensar como o mundo poderia ser diferente se os Antigos não tivessem sido tão egoístas.

Naquele dia, ao terminar a jornada de trabalho, sentia-se extenuada. Fora um dia duro. E grande parte do seu cansaço devia-se à boa notícia que recebera na noite anterior e que a entusiasmara ao ponto de lhe roubar o sono e desacelerar a passagem do tempo.

O seu coração palpitava de ansiedade. Por isso, decidiu ir a um sítio que lhe trazia sempre paz. No interior da única igreja que ainda se mantinha erguida no setor, Margarida estava sentada no que restava de um banco de madeira, a observar o céu.

Não que fizesse muita diferença, pois a tonalidade nunca mudava. Fosse dia ou noite. Estivesse bom ou mau tempo. Variava somente a tonalidade do cinzento ou o acentuar do negrume. Segundo os Antigos, antes daquele espesso manto de poluição se apoderar dos céus, era possível olhar para cima e vislumbrar um espetáculo magnífico. Margarida vira imagens do céu antes do Desastre: dotado de um azul cristalino e nuvens de alvura imaculada que, por vezes, tapavam um astro brilhante, o Sol. Recordava com nostalgia a avó a descrevê-lo como a mais bonita pintura de sempre, que irradiava luz e emanava calor. Mas a Humanidade tinha de estragar um planeta tão belo.

Com um suspiro audível, levantou-se e voltou a olhar para cima. Através do enorme buraco do telhado, contemplou a negrura do céu que se espraiava para lá da cúpula transparente. Era esta cápsula protetora que envolvia as áreas limítrofes de todos os setores e impedia que as impurezas do Exterior chegassem até ao Mundo Civilizado.

Sempre que entrava naquela velha e decrépita igreja, sentia-se perto da sua velhota. Sentia-se em paz. Lembrava-se dos passeios que davam e das histórias que a maravilhavam. Histórias de um tempo em que as pessoas eram livres e ninguém controlava onde podiam ir ou o que eram autorizadas a fazer. Agora a avó já não lhe podia contar histórias. Contudo, o conforto que aquele lugar lhe trazia era mais do que suficiente para apaziguar o coração e prepará-la para uma noite que sabia que seria especial.

Talvez por isso tenha decidido ir até à igreja.

A avó explicara-lhe que, ao longo da História da Humanidade, a religião sempre servira para controlar as massas. Por isso, e na impossibilidade de o Governo Mundial controlar todos os credos e crenças num mundo frágil e propenso a extremismos, optou-se pelo caminho mais fácil: a extinção das religiões. Fora uma decisão que, numa primeira instância, parecera impossível de cumprir. Contudo, os sobreviventes do terrível triénio, conhecido como «o Desastre», ficaram de tal forma traumatizados e desesperados com a sucessão de tragédias vivenciadas que se tornou difícil acreditar na existência de um Deus encarregue de os amar e proteger. Em 2099, já ninguém sabia rezar.

Embora Margarida duvidasse da existência de uma entidade divina e metafísica que zelasse por si, não resistiu a entoar uma prece a quem a quisesse ouvir. Uma prece pelo futuro e pela felicidade dos seus filhos, a sua maior fonte de alegria e, proporcionalmente, a razão pela qual tinha dificuldades em adormecer à noite.

Fora a primeira vez que rezara. Pelo menos, que se lembrasse. Aquele era um dia diferente e ela não se lembrava de alguma vez se ter sentido tão nervosa.

O futuro era incerto. A cada dia que passava, o mundo tornava-se mais perigoso e inóspito, com fenómenos naturais violentos e pandemias cada vez mais letais. Após o Desastre, a maioria das áreas do planeta Terra haviam-se tornado áridas e impossíveis de habitar, pelo que houve a necessidade de reestruturar o panorama global. Desta forma, os sobreviventes foram aglomerados em setores, ou seja, locais que ainda apresentavam o mínimo de condições para a vida humana subsistir.

Poucos queriam trazer crianças para um mundo opressivo, onde cada dia se travava uma batalha pela sobrevivência. E, daqueles que queriam, muitos acabavam por não conseguir, ou não fosse a infertilidade uma maleita que afetava cada vez mais homens e mulheres, transformando um nascimento de um bebé num acontecimento raro e digno de aclamação. Os teóricos debatiam se a principal causa da extinção da Humanidade seria um cataclismo de proporções catastróficas ou, simplesmente, o término da reprodução humana.

Margarida pertencia ao Setor 47, local que acolheu sobreviventes de um país anteriormente chamado Portugal. Naquele instante, sorria ao pensar que, antigamente, havia países, áreas delimitadas por fronteiras e, imagine-se, com um nome. Achava essa forma de organização muito mais bonita do que a atribuição numérica que a fazia sentir-se uma presidiária.

E se fosse só isto que me faz sentir uma prisioneira...

Ao chegar à saída da igreja, Margarida ajeitou a máscara, prendeu os longos cabelos negros, ajeitou o modesto vestido branco — que contrastava com a indumentária escura e acinzentada da grande maioria das pessoas — e praguejou entre dentes quando os seus olhos cansados perceberam que caía uma chuva miudinha. Embora fosse um fenómeno meteorológico de enorme raridade, quando ocorria nunca se ficava por umas meras pingas. A água potável era um bem escasso e os solos férteis eram uma raridade ainda maior, pelo que, nos dias em que chovia, os governadores de cada setor recebiam ordens para abrirem a abóbada da cúpula, deixando entrar a água, que era purificada nos filtros localizados por baixo das aberturas, de forma a garantir que detritos, radioatividade e outros perigos não chegassem à população.

No entanto, era quase certo que naquela noite viria uma tempestade, por isso Margarida tinha de se apressar para reforçar as janelas e o teto da sua casa. A última intempérie fora de tal forma violenta que vários dos filtros da redoma cederam, caindo um verdadeiro dilúvio sobre o Setor 47. Na sua casa, o contraplacado e as telhas plastificadas cederam, começando mesmo a chover no meio da sala e no quarto da bebé.

Ainda bem que fui ao supermercado à hora do almoço, pensou, apalpando no bolso, com uma mão, as senhas de refeição que tinham sobrado, e segurando o saquinho das compras com a outra. Aquele era um dia especial, pelo que se permitiu cometer uma extravagância financeira, adquirindo uma maçã para cada membro da família. Uma maçã verdadeira! Não em comprimido. Sabia que a fruta era um bem de luxo, mas quando viu aquelas maçãs disformes e avermelhadas, guardadas no cofre transparente em exibição na banca, não conseguiu resistir. Mal conseguia esperar pela reação dos seus filhos quando vissem que levava para casa «comida verdadeira». Com determinação, tirou da mala um comando com um grande botão vermelho, que pressionou com força. De imediato, uma bolha transparente e climatizada cresceu à volta do aparelho, envolvendo paulatinamente as formas do seu corpo numa grande capa transparente. Antes de guardar o comando, olhou para o pequeno ecrã monocromático.

Caramba, no exterior estão 57 graus Celsius...!

Livro: "Mãe"

Autor: Francisco Ramalheira

Editora: Saída de Emergência

Data de Lançamento: 1 de agosto de 2024

Preço: € 17,70

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Sempre que chovia e as redomas que envolviam os setores se abriam, era certo que havia um súbito aumento da temperatura. Tal acontecia por- que os vapores refrigerados, que ajudavam a tornar suportável a vida dentro da redoma, não tinham capacidade para combater as massas de ar quente que provinham do exterior. Estas mudanças de temperatura doentias eram apenas mais uma razão para os habitantes não saírem de casa. Devidamente protegida da chuva e resignada com o facto de ficar empapada em suor assim que metesse o pé fora da igreja, Margarida estugou o passo. Afinal de contas, carregava um bem precioso. E «comida verdadeira» era uma tentação para o mais honesto dos homens.

À sua frente estendia-se um conjunto conspurcado de vielas escuras, repletas de todo o tipo de dejetos e de meliantes. Infelizmente, no Setor 47, muitos não tinham uma casa, pois não havia espaço para construir mais habitações. Embora o Governo Mundial facultasse dormitórios públicos e máscaras com filtros, a verdade é que pouco conseguia fazer pela limpeza das ruas.

O odor a suor, urina e álcool era suficientemente intenso para queimar os pelos do nariz de todos os que não estavam habituados a passar por ali. Mas Margarida nem sentia o cheiro agoniante, pois já estava vacinada para este tipo de odores nauseabundos. Crescera com aqueles aromas e habituara-se à sua inalação. O característico cheiro a morte, podridão e decadência fazia parte do seu quotidiano. Do seu e de grande parte da população mundial. Em vários setores, os governadores penduravam purificadores com odores florais nas ruas, mas a verdade é que estas traquitanas perfumadas de pouco ou nada serviam.

À medida que abandonava as vielas mais recônditas e se aventurava pelas ruas principais, estas começavam a pejar-se de todo o tipo de gente. Nos finais de tarde, as ruas ficavam cobertas de pessoas acabadas de sair do trabalho, vendedores de rua e velhos descabelados, que se sentavam com os seus pares para jogarem nos tablets e navegarem pela WatchYou, a única rede social aprovada pelo Governo Mundial. Os bares enchiam-se de pessoas que queriam esquecer as vicissitudes daquele dia, afogando no álcool as mágoas de um dia de trabalho hediondo, de um casamento doente ou da chegada de uma doença terminal a mais um familiar ou amigo. À porta dos bares, as pessoas cambaleavam, abraçavam-se e vomitavam. Alguns entoavam cânticos em memória dos «bons tempos». Os tempos antes do Desastre. Era nesta hora que emergiam os alcoólicos e os especialistas na arte do furto das senhas de racionamento, que se escondiam nas sombras, esperando, pacientemente, pela passagem dos mais incautos. No entanto, Margarida não tinha medo deles. Não tinha receio da sua gente. E a todos dedicava um sorriso terno, que era retribuído com sinceridade.

De quem ela tinha medo era daqueles que trajavam a farda rubra e negra, botas de cabedal, cassetete nodoso, pistola no coldre e uma traquitana tenebrosa presa ao dedo, denominada laserfinger. Os únicos que não sorriam. Estes eram os soldados da Milícia Armada do Governo Mundial e a sua tarefa era matar à nascença qualquer escaramuça, protesto ou o mais inocente e débil ato de rebelião que pudesse pôr em causa o Governo Mundial.

Porém, os homens da Milícia Armada não eram os únicos portadores de armas.

Era rara a pessoa que se aventurava na rua sem, pelo menos, uma arma a tiracolo ou uma faca presa nas calças. Nos mercados negros até já era possível encontrar a tão famigerada arma do Governo Mundial, pelo que era cada vez mais usual ver populares com um laserfinger no indicador. Margarida arrepiava-se sempre que passava por alguém que envergava aquela estrutura de metal em volta do dedo, que permitia o disparo de lasers coloridos muito mais letais do que as tradicionais balas. Os laserfinger eram proibidos e a sua utilização carecia de autorização do Governo Mundial, sendo os infratores desta norma severamente punidos pelas autoridades. Margarida desconfiava que esta proibição não se devia à letalidade da arma, mas porque o Governo Mundial queria garantir que os seus agentes eram os únicos que se faziam acompanhar do «apontador da morte», como era conhecido nos setores, dando-lhes, assim, uma inegável vantagem.

Nos últimos meses, Margarida via cada vez mais indicadores serem guardados no bolso ou no interior de um manto, à medida que a Milícia Armada passava. O descontentamento do povo crescia e ela temia que este sentimento se descontrolasse. É verdade que tinha muitas falhas a apontar ao Governo Mundial, mas a sua queda implicaria mortes e sofrimento. Ainda mais. E, por isso, se calhar era preferível as coisas ficarem como estavam. O ser humano tinha a capacidade de se habituar a tudo. Até quando atentavam contra os seus direitos fundamentais.

Embora os militares da Milícia estivessem em quase todas as ruas, raramente intervinham em assaltos ou atos de violência que não tivessem maledicência para com o Governo Mundial. As escaramuças populares não lhes diziam respeito. Era por isso que homens, mulheres e crianças andavam armados nas ruas. Não tinham outra forma de se protegerem.

Margarida era uma das poucas que se aventuravam desarmadas fora de casa. Não por ser corajosa, mas porque era uma Mãe. E era difícil encontrar um cargo mais respeitado no Mundo Civilizado. Nem o mais perverso e aviltado dos seres teria coragem de roubar ou fazer mal a uma Mãe. Todos no Setor 47 conheciam e admiravam a menina Margarida Travis, pois apesar da sua juventude dera guarida a cinco crianças que haviam perdido os pais.

Dizem-nos as leis mais básicas da economia que a escassez de um bem é o que avalia o seu valor. Por isso, no Mundo Civilizado, as crianças eram consideradas o bem mais valioso da Humanidade.

Ou não estivessem em vias de extinção.

3

Uma visita muito esperada

Margarida chegou a casa encharcada.

Depois de o leitor da porta lhe analisar as íris e autorizar a entrada, suspirou de alívio e pousou as maçãs no móvel plastificado da entrada.

Desapertou a máscara que a impedia de respirar as impurezas do ar, deixou a sua roupa na zona de descontaminação, ligou o purificador de oxigénio e, com um grito caloroso, chamou pelos filhos.

Aquele era o momento do dia de que mais gostava.

Margarida queria ter filhos desde que se lembrava de existir. Passara a infância agarrada à Júlia, uma boneca de trapos que a sua avó lhe fizera, e que a menina enchia de amor e carinho em todas as suas brincadeiras. Por isso, quando soube que no Setor 47 havia órfãos a precisar de uma família, nem pestanejou. Havia pessoas com muito mais condições para receber as crianças. Casais com casas decentes, adultos mais velhos ou com melhores vencimentos. Porém, todas essas pessoas assobiaram para o lado e fizeram de conta que não viam o que se passava diante dos seus olhos. No entanto, Margarida não foi capaz de olhar para o lado. Não se preocupou em saber se tinha dinheiro suficiente para dar de comer a tanta gente ou se caberiam todos na sua humilde habitação. Como dizia a sua avó, o mais importante era haver amor. E isso nunca faltou na casa de Margarida.

Ao ouvir as vozes entusiasmadas das crianças, a mãe permitiu-se relaxar e, não se contendo, tirou uma maçã da saca fechada hermeticamente e deu-lhe uma grande dentada. Ficou de olhos fechados, em êxtase com o sabor exótico que as suas papilas gustativas há muito não sentiam, procurando acalmar o coração que lhe ribombava no peito.

Por um lado, entusiasmava-se com a possibilidade de a sociedade secreta, que o povo acreditava ser a salvação da Humanidade, existir. Mal conseguia conter a excitação e a emoção pela conversa que a esperava naquela noite. Por outro lado, aterrorizava-a a hipótese de a Academia da Esperança não ser o que as lendas contavam e que aquela reunião lhe suprimisse a fagulha de esperança que tinha num futuro mais risonho. Ou, pior, que aquela carta não passasse de uma muito bem elaborada brincadeira, de um ser desprezível qualquer que, sabendo que ela vivia em constante preocupação pelo futuro dos seus filhos, resolvera aplicar-lhe a mais cruel das partidas.

Estas apreensões evaporaram-se do seu espírito quando as suas crianças a agarraram, num abraço coletivo sufocado que tinha o condão de relativizar a importância de qualquer problema.

Margarida estava a distribuir as maçãs pelos filhos quando o som da campainha a fez dar um salto.

Chegaram! A Academia está aqui!

Com o susto, a maçã farinhenta que roía caiu redonda no chão, rolando escassos centímetros pelo soalho puído e desgastado pelo passar dos anos. Dada a enorme escassez de fruta, verduras e todo o tipo de alimentos dados pela terra, a lei imposta pelo Governo Mundial considerava crime atirar comida para o chão. Como tal, noutra ocasião, Margarida apanharia a maçã de imediato, enquanto pediria desculpa entre dentes por aquela inqualificável falta de respeito. Todavia, desta vez o fruto permaneceu no chão. Com os nervos a borbulharem, pediu aos seus meninos para fazerem pouco barulho, esperando que eles se afastassem para correr o ferrolho. Enquanto a porta se abria, o coração de Margarida saltitava-lhe no peito e acelerava à medida que surgia aos seus olhos um homem com a fisionomia e o traje de quem não pertencia ao Setor 47, confundindo-se quase com o negrume das ruas.

— Boa-noite, Margarida — cumprimentou-a, à medida que tirava a máscara.

A jovem ficou estarrecida ao ver o rosto do recém-chegado. De imediato, o suor acumulou-se-lhe nas têmporas. À sua frente estava o diretor executivo da GreenAir, a maior empresa de purificadores de ar do mundo.

O que é que ele está aqui a fazer?

Margarida queria desesperadamente fazer uma infinita miríade de perguntas, mas o olhar vítreo do seu interlocutor fê-la hesitar e da sua boca não saiu o mais singelo dos sons.

— Aqui não — limitou-se o recém-chegado a proferir, adivinhando a intenção da bonita jovem. — Posso entrar?

Margarida afastou o cabelo que pendia sobre a testa e fez sinal com a mão direita para que a visita entrasse.

A sua vida tinha acabado de mudar.

4

Thomas Denzel

Margarida não conseguia tirar os olhos do homem de sorriso afável que acabara de descalçar as pesadas botas negras de couro, colocando-as na sapateira da entrada.

O indivíduo de tez negra tinha seguramente mais de dois metros e uma largura de ombros que a faria sentir-se segura em qualquer viela do setor. Mesmo naquelas onde pontificavam os larápios mais perigosos. As rugas e os cabelos esbranquiçados do homem de meia-idade davam-lhe um ar distinto. As vestes eram tingidas de negro, desde o casaco de cabedal aos jeans e ao manto que lhe cobria a cabeça. De repente, aquele que era um dos homens mais poderosos do Mundo Civilizado tirou uma pistola do coldre, rodou rapidamente sobre os calcanhares e apontou para a porta. O disparo foi mudo e só passados uns segundos de mutismo surgiu um zumbido, que aumentou irritantemente de intensidade, até se extinguir tão depressa como aparecera.

— Eu sou o coronel da Academia da Esperança. O meu nome é Thomas Denzel — apressou-se o homem de negro a apresentar-se, oferecendo a Margarida novo imaculado sorriso.

— O senhor é o meu patrão. Eu trabalho na GreenAir.

— Eu sei que sim, minha querida. Não foste lá parar por acaso.

Embora nunca tivesse falado com aquele homem, Margarida sentiu um grande alívio quando o viu. Thomas Denzel era reconhecido como um líder justo e humanista, tendo aquilo que poucos líderes mundiais detinham: respeito popular. Era reconfortante saber que era um homem deste calibre que estava na Academia da Esperança.

— Peço desculpa se te assustei — disse Thomas —, mas não poderia falar sem me certificar de que esta casa estava sem escutas. Esta pistola dispara um sensor que apitaria caso a tua casa estivesse sob o escrutínio do Governo Mundial. É o último grito para «desbugar» as casas.

A jovem sentia-se a viver um daqueles filmes de espiões que, de vez em quando, passavam na televisão. Embora não fossem criados filmes novos há mais de trinta anos, Margarida era uma entusiasta da sétima arte, em particular de filmes de espionagem, pelo que, mais do que a atemorizar, aquele momento injetou-lhe uma generosa dose de adrenalina nas veias.

Apercebendo-se da estupefação que a sua ação criou, Thomas redobrou o pedido de desculpas e acrescentou:

— Importas-te que faça mais uma coisa?

Margarida anuiu, autorizando o estranho a aproximar-se e pegar-lhe com ternura no pulso, enquanto tirava do bolso do casaco de cabedal um estranho dispositivo cilíndrico, que encostou à sua pele. O objeto emitiu um ligeiro som, que apitou de forma ininterrupta por uns segundos, até se calar abruptamente.

— Acabei de desativar o teu localizador.

— L-localizador? O que é isso?

— Um microchip que tens aí. — Thomas apontou para a cabeça de Margarida. — É uma forma de o Governo Mundial saber onde estás e o que sentes. Os nossos queridos líderes sabem sempre quem está exaltado e onde.

Localizador? Mas que raio...? Nunca ouvi falar de tamanha atrocidade! Um controlo desses é sequer legal?, cogitava Margarida febrilmente.

Ao notar a incredulidade da sua interlocutora, Thomas apressou-se a esclarecer:

— Isto é informação classificada e é um dos segredos mais bem guardados do Governo Mundial. Poucos sabem da existência destes localizadores.

— Mas se desativou o meu localizador e se o sistema informático do Governo Mundial é atualizado diariamente... não vão dar pela minha falta?

Que miúda tão esperta..., concluiu Thomas antes de responder:

— O teu localizador foi desativado... de forma especial. Este aparelho foi criado por Matthew Krone, um dos nossos mais brilhantes cientistas, que concebeu um mecanismo que desativa o GPS, mas continua a enviar os teus dados para o sistema central. Ao tocar-te, o dispositivo analisou os teus padrões de comportamento, hábitos e sítios por onde te deslocas, indo buscar essa informação ao teu quotidiano do último mês. Posteriormente, envia os elementos recolhidos para as bases de dados do Governo. Desta forma podes andar por onde quiseres, que eles vão continuar a receber a informação que os leve a pensar que estás a ter dias corriqueiros.

— M-mas isso é incrível, senhor diretor — balbuciava Margarida, sem tirar os olhos do local onde aquele estranho dispositivo lhe tocara.

— Trata-me por Thomas, por favor — replicou o coronel com sinceridade. — Afinal de contas, vamos ser colegas e...

A voz grave e profunda do homem da Academia esvaiu-se num murmúrio. No final do exíguo corredor estavam cinco crianças — dois rapazes e três raparigas — que, encostadas umas atrás das outras, observavam com atenção, e alguma desconfiança, o estranho que quase tocava com o cocuruto da careca no teto.

Para espanto geral, os olhos grandes e amendoados de Thomas ficaram marejados de lágrimas. O gigante aproximou-se lentamente das crianças e prostrou-se de joelhos à sua frente, observando os rostos infantis que tinha diante de si. Para justificar a sua atitude, virou-se para trás, dizendo a Margarida:

— Já não me lembro da última vez que vi tantas crianças juntas...

De seguida, o agente da Academia da Esperança levantou-se e baixou humildemente a cabeça na direção das crianças:

— Vocês deviam poder brincar em liberdade, na rua, ao sol e em cima das árvores.

Os cinco entreolharam-se, confusos com a utilização de palavras que não conheciam. A menina do meio perguntou à mais velha «o que é uma árvore?».

— Os adultos tiraram-vos a infância — entoou com a voz embargada. — Perdoem-nos.

Os meninos e meninas trocaram olhares atarantados, sem saberem o que responder, olhando para a mãe em busca de um socorro que não veio. Afinal de contas, Margarida estava tão aturdida quanto eles.

— Mas prometo que vamos fazer tudo para vos compensar. Ainda vão a tempo de conhecerem um mundo novo! Acham que vos posso dar um abraço?

As crianças voltaram a olhar para a mãe, que lhes sorriu em sinal de anuência. Com um ligeiro acenar de cabeça, os meninos deram autorização ao homem, que, embevecido, as envolveu no seu apertado abraço protetor.