Facto: morreram entre o dia 1 de Janeiro e o final de Outubro deste ano mais 6.434 pessoas do que em igual período do ano passado.

Facto: até dia 31 de Outubro morreram 2.507 pessoas com Covid-19 em Portugal.

Facto: se retirarmos do número total as mortes associadas à Covid-19, morreram nos dez primeiros meses deste ano mais 3.927 pessoas do que no período homólogo do ano anterior.

Podia continuar a "brincar" com os números de muitas maneiras e apresentar a média de óbitos por mês, por dia, fazer comparações com 2018, o pior ano dos mais recentes — é preciso recuar até ao final da década de quarenta para encontrar um número mais elevado de óbitos —, mas o choque de realidade seria sempre o mesmo: muito mais mortos.

Não sei pilotar aviões, mas sei ver quando um se espatifa no chão. No caso, antes do desastre acenderam muitas luzes, houve sinais de fumo, mas piloto e tripulação entraram em pânico. E aqui estamos nós: mais 6.434 mortos do que em 2020, prestes a ultrapassar as piores marcas de há 70 anos.

António Costa, Marta Temido e Graça Freitas têm acesso aos números do Instituto Nacional de Estatística e do sistema nacional de Vigilância da Mortalidade diária (de onde retirei os dados relativos a Setembro e Outubro, ainda provisórios).

Se olharmos para os últimos cinco anos, as principais causas de morte são, por esta ordem, as doenças do aparelho circulatório (cerca de 29%), os tumores malignos (perto de 25%) e as doenças do aparelho respiratório (aproximadamente 12%). Estes e outros doentes foram colocados em modo de espera pelo governo, pelo Ministério da Saúde e pela DGS, instituições em quem devíamos poder confiar e apoiar-nos. Só que na saúde stand by significa a morte. Um AVC, um enfarte ou um cancro não podem esperar.

O bloqueio do Serviço Nacional de Saúde está a matar e não sabemos até que ponto será irreversível. É preciso restabelecer circuitos nos hospitais e recuperar a actividade nos centros de saúde, sob pena não só de aumentar a mortalidade como de reduzir a qualidade de vida dos doentes.

Facto: em Janeiro e Fevereiro deste ano registaram-se, respectivamente, menos 1.064 e menos 753 mortes do que nos mesmos meses de 2019.

Facto: a partir de Março deste ano número de mortes por comparação com o mesmo período do ano anterior foi sempre superior.

Facto: em Julho de 2020 morreram mais 2.158 pessoas do que no mesmo mês de 2019 (das quais "apenas" 159 de Covid-19).

A 2 de Abril escrevi esta crónica. Repito hoje palavra por palavra, acrescentando apenas isto: Portugal e os seus responsáveis beneficiaram do factor tempo; a pandemia chegou ao país depois de ter atingido muitos outros na Europa e não só. Na primeira e na segunda vagas. Mas o tempo não foi usado a favor. Quem está a velar pelos doentes não Covid?

É certo que Portugal é um país envelhecido. "Uma sociedade envelhecida tem maior possibilidade de ter num momento maior número de óbitos", como escreve Maria Filomena Mendes, especialista em demografia, no livro "Como Nascem e Como Morrem os Portugueses", editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Mas isso não explica tudo e explica até muito pouco.

Quando confrontei Álvaro Beleza, director do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria, com os números que aqui publico recebi uma resposta que resume bem a preocupação de outros médicos que também contactei: "A afectação dos serviços de saúde para a Covid-19 reflecte-se directamente no adiamento de cuidados para outras patologias e está a afectar a resposta de quase todos os países. Pouca racionalidade e falta de nervos de aço para, ouvindo a ciência, decidir com planeamento. Se na invasão da Rússia por Napoleão Kutuzov desse ouvidos a redes sociais e tivesse medo de decidir, tinha posto todo o exército russo a defender Moscovo e teria perdido ambos. Falta serenidade a nível global e liderança. Boa vontade e esforço de todos tem havido, mas na arte da guerra a táctica ao serviço de estratégia com disciplina e voz de comando são essenciais".

O SNS tem de se organizar, recuperar o atendimento e parar de adiar consultas, exames e intervenções inadiáveis. Mais tarde é tarde de mais.

O avião está em rota de colisão e não é preciso ser piloto para saber isto. O que precisamos é de alguém que saiba pilotar a nave. É certo que cada um tem de fazer a sua parte: os ocupantes têm de evitar comportamentos de risco, mas o comandante tem de ter um plano de voo.