INTRODUÇÃO

Escreveram-se muitos e valiosos livros sobre as vidas e as experiências das pessoas negras em contextos geográficos muito diferentes1. Contudo, um número relativamente baixo está especificamente relacionado com as pessoas de ascendência africana na Europa antes das duas guerras mundiais. Alguns episódios isolados foram introduzidos marginalmente na História europeia, mas a maioria destes relaciona-se com a história da escravatura ou com os contactos coloniais desde o século xv. Muitas vezes, os trabalhos publicados associam a expressão «presença negra» a uma determinada área geográfica. Da «presença negra na Europa» até à «presença negra no País de Gales», estas publicações acompanham as vidas das pessoas de ascendência africana nesses locais2. Os géneros de livros disponíveis atualmente referem-se, amiúde, a homens e mulheres conhecidos. Como é óbvio, as vidas destas pessoas merecem ser analisadas e as suas biografias facultam interpretações interessantes, lançando uma nova luz sobre as respetivas histórias de vida. Por exemplo, nos últimos decénios, dedicaram-se diversas obras a antigos escravos. Desde Olaudah Equiano a Mary Prince, que viveram na Grã-Bretanha, o foco pareceu estar sempre nos abolicionistas do século xviii e nos seus contactos com diversos grupos de populações.

Os negros abolicionistas e outros grupos de homens e mulheres negros foram sendo observados relativamente aos seus papéis enquanto modelos em pinturas bem conhecidas ou como serviçais que surgiam em relatos de viagem e noutras produções artísticas. Quando analisados individualmente, estes homens e mulheres são, de um modo geral, entendidos como personagens de exceção cujas vidas foram transformadas pelos complexos contactos com os europeus. Em tais relatos, a ideia de excecionalismo é utilizada como um motivo plausível para a sua fama. Acredita-se que algumas das suas histórias sobreviveram dada a extraordinária natureza dos seus contributos para as sociedades europeias. Pouco, contudo, foi publicado sobre os restantes aspetos das suas vidas, como as ligações próximas que terão estabelecido com outras pessoas de ascendência africana. Algumas histórias foram esquecidas ou a sua importância subestimada. Por exemplo, a resistência africana à escravatura nas costas de África ou o combate ao comércio transatlântico de escravos em África raramente são mencionados na história colonial europeia. Ainda que a resistência não fosse incomum, surgem exemplos como o impactante episódio da rainha Nzinga no século xvii, as inúmeras revoltas de escravos a bordo dos navios ao longo da costa africana e as perturbações na vida das explorações pelos Maroons e pelas populações escravizadas que viviam nas proximidades dos seus senhores. Existe uma continuidade histórica da resistência negra à escravidão, e que faz parte do que Cedric J. Robinson viu como «raízes do radicalismo negro»3. De acordo com Robinson, para produzir riqueza, o Ocidente apoderou-se dos corpos negros através da violência, mas isto também assinalou o fim dos estados capitalistas. Com efeito, as sementes da destruição estavam encastradas nos meios de obtenção de riqueza.

Em fevereiro recebemos Rita da Nova e Joana Silva

Rita da Nova e Joana da Silva são as convidadas do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 24 de fevereiro, pelas 21h.

Iremos conversar a obra de Elena Ferrante e mais concretamente sobre "A Filha Obscura", novela integrada em "Crónicas de Mal de Amor", livro editado em 2014 pela Relógio d'Água. A conversa surge também no âmbito da adaptação desta história ao cinema, com o nome de "A Filha Perdida".

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

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As personagens negras que são relembradas constituem parte de uma história mais abrangente na luta contra a exploração. As ligações entre estas diversas histórias foram esquecidas porque a subjugação física vinha acompanhada não apenas pelo reescrever da história dos opressores, mas também por uma modelação da história dos oprimidos. Robinson analisa a forma como se descuraram determinados episódios — mesmo os que foram desvendados por respeitáveis estudiosos muito antes do esclavagismo transatlântico. O reconhecido historiador Heródoto, por exemplo, recordou contactos com os Etíopes e os Cólquidas, que pensou descenderem de Egípcios4. Na análise de Robinson, estes contactos são as peças que faltam, e que, embora registadas pelos historiadores, continuaram largamente por contar no moderno e contemporâneo norte global. Utilizando o exemplo da escravatura americana, Robinson também demonstra como os primeiros viajantes europeus registaram os sistemas social, cultural e agrícola que observaram nas regiões da África Ocidental; ainda assim, no século xviii, a narrativa de «negros» pouco sofisticados definia a ideologia dos colonos. Robinson observa que «a destruição do passado africano» foi um processo que passou por diversas fases5. Por exemplo, a atribuição de designações desempenhou um papel essencial no processo de eliminação. «O conceito de Negro, ao contrário das expressões “africano”, “mouro” ou “etíope”, não sugeria uma contextualização no tempo, ou seja, nem histórica nem espacial, isto é, nem etnogeográfica nem político-geográfica. O Negro não possuía civilização, culturas, religiões, história, lugar, nem, por fim, humanidade alguma que pudesse merecer consideração.»6. Robinson observa que «a criação do Negro, a ficção de um inculto animal de carga apenas apto para a escravatura, esteve muito associada às necessidades económicas, técnicas e financeiras de desenvolvimento do Ocidente desde o século xvi»7. Os africanos suficientemente valorosos para serem recordados eram os que haviam sido considerados excecionais.

A noção de excecionalismo é uma ferramenta interessante para compreender a História. É utilizada na narrativa histórica para lançar luz sobre episódios que se entrecruzam com classe, género, religião, raça, entre outras. Um dos problemas desta expressão é sugerir que um dado episódio, circunstância ou personagem são melhores do que outros. No entanto, como argumenta Philippa Levine, estas comparações possibilitam análises transnacionais e interculturais que poderão ajudar a estabelecer pontes entre diferentes episódios e países, fomentando ideias contraditórias8. Ao invés, o problema reside na universalização dos aspetos que acompanham muitos estudos comparativos, o que implica retirarmos ilações dos episódios por causa dos princípios orientadores que, supostamente, são partilhados por todos nós. Levine defende que, por vezes, o excecionalismo tenta «humanizar» um episódio, um contexto ou uma personagem, como exemplificado nos relatos de Niall Ferguson sobre o Império Britânico. Também pode «demonizar» um episódio, como demonstrado em estudos sobre ditadores como Hitler9. Não obstante, o apelo do excecional é inegável se acreditarmos na grande quantidade de livros que apresentam os respetivos episódios como relatos únicos de aspetos específicos da História regional, nacional ou global.

O excecionalismo é também uma noção que desempenha um papel importante nos estudos sobre raça, racismo e relações raciais. Dienke Hondius afirmou que o excecionalismo foi o último dos cinco padrões que formataram a história europeia da raça e das relações raciais. Hondius argumenta que a Europa oscilou entre «infantilização, exoticismo, bestialização, distanciamento e exclusão, e excecionalismo»10. Enquanto a infantilização pressupunha que os africanos e os asiáticos seriam, na sua essência, crianças, implicou também a muito discutível ideia de «paternalismo», segundo a qual os africanos necessitariam de ser protegidos ou, inclusive, salvos de si próprios e dos seus pares — como exemplificado na justificação da escravatura pelos seus defensores na Europa dos séculos xviii e xix11. O exoticismo, por outro lado, relacionava-se com o fascínio europeu pela diferença e pelos corpos de pele negra e castanha, mentalidades e culturas. Igualmente importante na história da hierarquização europeia das comunidades extraeuropeias foi a noção de bestialidade, que funcionava em conjunto com as duas anteriores supostas características. Tanto o apelo do corpo exótico percecionado, como o receio que este inspirava, estavam interligados com a questão da bestialidade. O africano era equiparado a um animal selvagem, insubmisso e propenso à violência. Associados ao maligno, os africanos necessitavam de ser «domesticados» para que os europeus que com eles contactavam se sentissem e estivessem seguros. Não domesticados, teriam de permanecer a uma distância segura, preferencialmente longe da Europa.

Neste contexto, o excecionalismo tem de ser observado a par de outros aspetos, como a relação entre africanos e europeus e o olhar europeu imposto aos africanos. O excecionalismo levanta algumas questões sobre que perspetivas definiram as trajetórias de um grupo e cuja posição em relação à raça e ao racismo demarcou o estatuto social de determinados europeus africanos. Citando o romancista americano africano Richard Wright, Hondius observa que «o racismo é, principalmente, um problema dos brancos porque estes conduzem as condições sob as quais o discurso da raça emergiu e perdura»12.

Agrupar as vidas de determinadas populações numa expressão cuidadosamente embalada e identificável como «Império», ou basearmo-nos num estudo de caso sobre a vida de um indivíduo, também nos ajuda a compreender que o excecionalismo abrange contextos específicos e complexos. O reconhecimento destes contextos permite-nos uma análise rica de encruzilhadas e ruturas nos relatos históricos, bem como abrir espaço para o estudo de trajetórias regionais e internacionais. O excecionalismo pode conduzir a uma minuciosa análise das tensões entre o que foi esquecido e o que está à espreita na margem dos discursos (as histórias esquecidas e por contar), e como a história é apresentada e transmitida quanto aos motivos sociais, culturais e, claro, políticos.

Os episódios excecionais servem um propósito na construção de identidades. No caso das histórias dos europeus africanos apresentadas neste livro, são excecionais porque desafiaram a obscuridade para serem incluídas nas narrativas europeias. Contudo, muitas destas histórias já existiam fora das hagiografias europeias. Algumas estiveram no âmago de relatos das civilizações hebraica, árabe e aramaica. Muitas destas histórias informam-nos sobre a natureza e o legado dos contactos entre os diversos mundos. Os capítulos seguintes variam entre figuras bastante conhecidas, que, tantas vezes, foram consideradas excecionais e os contextos que lhes facultaram a oportunidade para o reconhecimento e, inclusivamente, a celebração. Por vezes, estes episódios seguem uma ordem cronológica, embora noutros casos a narrativa aprofunde as experiências modernas e contemporâneas de um dado lugar antes de considerar histórias anteriores de povos de ascendência africana no mesmo país ou cidade. A abordagem cronológica ajuda-nos a compreender as alterações históricas na Europa e o seu impacto nos europeus africanos do tempo, ou como estes grupos de pessoas terão contribuído para definir as mentalidades posteriores. A opção do foco em lugares, indivíduos e grupos específicos foi ditada pela disponibilidade de fontes e a relevância destes episódios para questões contemporâneas sobre cooperação intercultural, identidade, entre outras. Os episódios decorrem entre os séculos iii e xxi. Este livro baseia-se em trabalhos académicos de eruditos que têm trabalhado nos diversos aspetos das narrativas de pessoas de ascendência africana e europeia, reunindo estes estudos de uma forma abrangente e única que vai além do cartografar a presença negra na Europa, explorando questões como a identidade, a cidadania, a resiliência e os direitos humanos. Os europeus africanos são definidos e percecionados enquanto viajantes. São cidadãos do mundo, o que poderia conduzir algumas pessoas a acusá-los de serem «cidadãos de lado nenhum»13.

À primeira vista, os direitos humanos e a cidadania parecem conceitos modernos. Os direitos dos homens e, mais tarde, das mulheres estiveram dependentes de determinadas condições desde tempos imemoriais. Na Europa, a história dos direitos está profundamente associada a histórias da política, da economia e da filosofia. Desde a Grécia Antiga até à Reconquista, a questão dos direitos definiu a história europeia. Mas, a partir do século xv, transformou-se numa questão premente à medida que a Europa saía, lentamente, do feudalismo. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, a França viu-se obrigada a reconhecer a mudança e a exigência da população por novos direitos e liberdades, que o resto da Europa rapidamente acompanhou. Particularmente relevante na história dos direitos humanos e da cidadania é a questão dos direitos das pessoas extraeuropeias cujos corpos apenas foram considerados relevantes como ferramenta de criação de riqueza. Os corpos dos escravos e dos africanos, mal tolerados nas cidades europeias, trouxeram à superfície as questões de pertença, identidade e liberdade, como veremos nos capítulos seguintes. Considerava-se que os africanos com um certo grau de liberdade na Europa o haviam justificado, ou que lhes foram concedidos direitos e privilégios, e, por isso, eram considerados excecionais, capazes de desfrutar de direitos exclusivos. Em alguns casos, esta exclusividade implicava serem acolhidos pelo grupo maioritário, embora noutras situações o reconhecimento da sua existência não garantia, de todo, a aceitação destes europeus africanos. Esta aceitação era, por vezes, alcançada por um procedimento que os obrigava a renunciar aos seus antecedentes ou a um dos progenitores. Contudo, tudo isto nem sempre conduzia à inclusão, pois as experiências de inúmeros europeus africanos em França assim o demonstraram.

Na Europa, as questões de inclusão e aceitação também se encontram vinculadas a modelos de cidadania e integração para grupos minoritários. O modelo assimilador da França, por exemplo, não erradica o racismo institucionalizado nem altera as mentalidades racistas a um nível individual. Com efeito, o modelo francês de assimilação é baseado em perspetivas antirracialistas. David T. Goldberg sugeriu que:

O antirracismo requer memória histórica, evocando as condições de degradação racial e relacionando as condições contemporâneas com as históricas e as regionais com as globais. Se o compromisso antirracista exige memória e evocação, o antirracialismo sugere esquecer, ultrapassar, seguir em frente, apagar os termos de referência, na melhor das hipóteses (ou na pior), uma memoralização em lugar de uma nova narrativa e reparação das expressões de humilhação e desvalorização.14

As experiências dos europeus africanos quanto à questão da cidadania e dos direitos humanos variam enormemente e estão dependentes dos diversos contextos históricos, sociais, políticos e económicos. A estas ideias está vinculada a noção de identidade, que depende de variáveis que atravessam o tempo e o espaço, tais como raça, legado e cultura. Em resultado, a terminologia utilizada neste livro também varia. Utilizará e citará expressões como «africanos», «negros», «americanos africanos», «europeus africanos», «mixed race», «dupla ascendência», entre outras, não enquanto categorias intermutáveis e intemporais, mas como palavras com significado em locais particulares e épocas específicas da história.

A expressão «europeu africano» é, portanto, uma provocação para quem nega que uma pessoa pode possuir múltiplas identidades e, inclusivamente, cidadanias, bem como para aqueles que afirmam não «ver a cor». É, também, um convite audaz para repensarmos a forma como utilizamos e lemos as histórias europeia e africana e definimos expressões como cidadania, coesão social e fraternidade, que têm sido a base dos atuais valores societários europeus. Além disso, põe em causa a aplicação de tais expressões a diversos grupos como ferramentas de exclusão. Os europeus africanos que vivem na Europa estão nas encruzilhadas de diversas entidades que se intersectam. Seria igualmente adequada a expressão «africanos europeus» para nos referirmos às pessoas de ascendência africana nascidas na Europa, mas a sua maioria é definida por outros grupos ou define-se, antes de mais, pelo vínculo ao continente africano. Este vínculo e identificação serão mais aprofundados nos próximos capítulos. Os objetivos deste livro são os de compreender estes vínculos ao longo do tempo e do espaço, desmistificar mitos persistentes e reviver e celebrar as vidas dos europeus africanos.

O Capítulo 1 estabelece as ligações entre o passado e o presente através dos contactos entre os Romanos e Meroítas, Egípcios e Etíopes nas regiões do Mediterrâneo. Estas ligações trazem para primeiro plano as visões da cristandade sobre os mundos árabes e muçulmanos e as dinâmicas em jogo na construção da identidade ao longo das linhas religiosas e etnorraciais desde o ano 20 AEC até ao século xvii. Estas dinâmicas permitiram que europeus africanos como São Maurício, a Rainha de Sabá, o imperador Sétimo Severo, entre outras figuras menos conhecidas, navegassem diversos mundos. 

No Capítulo 2, continuamos a viajar no tempo, ao longo do Mediterrâneo, e a descobrir que, no século xvi, o sul da Europa era caracterizado por uma população negra de dimensão considerável. Algumas figuras, como o primeiro duque de Florença, Alessandro de Médici, alcançaram bastante proeminência, ao passo que outros viveram em subjugação. Embora alguns dos indivíduos escolhidos fossem livres, a vasta maioria era escrava e trabalhava nas regiões rurais das penínsulas Itálica e Ibérica, ou enquanto criados domésticos das casas mais abastadas. Analisando a forma como os diversos grupos interagiam na Europa do Renascimento através das vidas de Juan Latino e outros, muitas vezes anónimos, homens e mulheres escravos, permite-nos compreender como eram concebidos conceitos como racismo e racialismo.

O Capítulo 3 analisa as vidas de europeus africanos na Europa Ocidental e Central. A Europa dos séculos xvi e xvii continuava a prosperar com o comércio, e o envolvimento da Europa Ocidental no comércio transatlântico de escravos e o envio de escravos para as explorações definiram de um modo mais profundo a relação entre os continentes africano, europeu e americano. No século xviii, a disputa europeia pelos mercados de matérias-primas e de escravos alterou a natureza do relacionamento entre Europa e África, como exemplificado pela vida do padre afro-neerlandês Jacobus Capitein. O século xviii foi uma época em que a presença negra era severamente controlada, tendo sido utilizada a classificação científica de diversas espécies numa tentativa de estabelecer uma hierarquia racial. Foi também o tempo em que surgiram importantes figuras como Joseph Boulogne, Chevalier de Saint-Georges, que puseram em causa tais classificações.

No Capítulo 4, dirigimos a nossa atenção para quem nasceu em África, com progenitores africanos e europeus, bem como o papel das mulheres negras na formação das identidades. Este capítulo analisa os papéis de género e os interesses mercantis nas cidades costeiras. Debruça-se sobre a forma como diversos mercadores europeus se estabeleceram e fizeram fortuna, deixando para trás filhos de dupla ascendência europeia africana. Também analisa o esbatimento das hierarquias e fronteiras raciais nos locais em que a ascendência europeia oferecia grandes vantagens económicas e sociais, como ficou padronizado nas vidas das Signares, nas ilhas de Goreia e de São Luís, no Senegal, e das mulheres Ga no Gana. Este capítulo aprofunda ainda os legados destas histórias na sociedade contemporânea dinamarquesa.

Europeus Africanos, Uma História por Contar
Europeus Africanos, Uma História por Contar créditos: Editorial Presença

Livro: Europeus Africanos, Uma História por Contar

Autor: Olivette Otele

Editora: Editorial Presença

Data de lançamento: 2 de fevereiro

Preço: € 17,91

O Capítulo 5 apresenta os territórios de Brandemburgo como exemplo de amnésia histórica, e observa os processos que conduziram à evocação e, depois, ao esquecimento do passado da região, tendo assim permitido que a Alemanha se apresentasse como «imaculada» quanto ao comércio esclavagista. Porém, a colonização alemã de África e dos Camarões está bem documentada, e estas ligações facultam-nos a oportunidade de aceder a histórias de europeus africanos como os Manga Bell. As narrativas europeias africanas são transcontinentais e é importante ver como se interligam com episódios de destacadas figuras americanas africanas e de origem caribenha, senegalesa e alemã.

O Capítulo 6 estuda as viagens de europeus africanos nos séculos xx e xxi, comparando as experiências dos afro-italianos e dos afro-suecos no que respeita, particularmente, à questão da cidadania. O capítulo prossegue o aprofundamento de episódios de europeus africanos considerando figuras bem conhecidas, como Abram Patrovich Hannibal e Aleksandr Pushkin, na Rússia, e demonstra que as ligações com África não implicaram uma perspetiva societária positiva quanto às questões da raça e cooperação inter-racial. O capítulo termina com um exemplo de resistência e resiliência dos europeus africanos nos séculos xx e xxi através do academismo afro-neerlandês e do ativismo de base.

O Capítulo 7 reflete sobre a forma como funcionam as identidades e os marcadores de identidade na Europa contemporânea. Este capítulo reúne diversas noções como raça, racismo, racialismo, cidadania, libertação radical negra e ativismo. Analisa como o género, e o afrofeminismo em particular, desempenha um papel essencial na definição das identidades europeias africanas. Destaca também a criação e a organização de espaços para recuperar e planear a luta contra as desigualdades sociais. Este capítulo lança luz sobre discrepâncias no combate à discriminação no interior da União Europeia, como demonstrado nas operações de detenção e revista em Espanha ou nas experiências dos afro-gregos. Seguidamente, reconhece o extenso trabalho desenvolvido na Grã-Bretanha quanto à questão dos europeus africanos e as diferentes formas em que os negros britânicos do século xxi combatem a discriminação racial, a desigualdade e a marginalização. Este capítulo termina considerando as semelhanças nas histórias dos europeus africanos e mostrando as formas em que estas se inserem nas histórias transnacionais, europeias, africanas e americanas.

Além de recuperarem episódios do passado relacionados com os contactos, as experiências e a formação de identidades, estas histórias também nos informam das ágeis e criativas formas com que diversas comunidades respondem às perceções negativas sobre as pessoas de ascendência africana do norte global, no século xxi. Hoje, os europeus africanos continuam a edificar alianças transnacionais e transcontinentais fortemente inclusivas. Os europeus africanos da Geração Z têm mostrado uma apetência para reavivar as impactantes histórias dos seus antepassados. Procuram ativamente estas bolsas de conhecimento envolvendo-se no ensino virtual, nos debates da Internet, nas redes sociais, entre outras. Geram, ainda, novas narrativas de resiliência e entregam-se ao ativismo, desde o fomento de ações sobre alterações climáticas, igualdade de género e direitos LGBTQ até à erradicação do racismo, da islamofobia, do antissemitismo e de outras formas de discriminação.

Esta energia e participação ativa na promoção da justiça social atingiram um novo pico com uma resposta global e esmagadora ao assassínio do americano africano George Floyd, perpetrado pela polícia em maio de 2020. As manifestações em massa conduzidas pelo movimento Black Lives Matter e os consequentes debates sobre o racismo sublinharam a necessidade de expandir o conhecimento das histórias das pessoas de ascendência africana e a urgência com que devemos rever o ensino da história colonial no norte global.

Europeus Africanos é uma resposta a estas necessidades. Pretende facultar múltiplas histórias como ponto de partida para aprender sobre o passado e acabar com a opressão racial no presente. Este livro demonstra que o envolvimento transcultural é uma poderosa via para combater a discriminação. Acima de tudo, é uma celebração de longas histórias — africanas, europeias e globais — de cooperação, migrações, resiliência e criatividade que permaneceram por narrar durante séculos.

Notas

1. Alguns destes são: Allison Blakely; Blacks in the Dutch World: The Evolution of Racial Imagery in a Modern Society, Indiana University Press, 1993; Hakim Adi (ed.),  Black British History: New Perspectives, Zed Books, 2019; Stephen Small, 20 Questions and Answers on Black Europe, Amrit, 2017; Sara Lennox (ed.), Remapping Black Germany: New Perspectives on Afro-German History, Politics and Culture, University of Massachusetts Press, 2016; Trica Danielle Keaton, T. Denean Sharpley-Whiting e Tyler Stovall (eds.), Black France/France Noire: The History and Politics of Blackness, Duke University Press, 2012; N. Florvil e Vanessa D. Plumly (eds.), Rethinking Black German Studies. Approaches, Interventions and Histories, Peter Lang, 2018; Darlene Clark Hine, Trina Keaton e Stephen Small (eds.), Black Europe and lhe African Diaspora, University of Illinois Press, 2009; Mischa Honeck, Martin Klimke e Anne Kuhlmann (eds.), Germany and the Black Diaspora: Points of Contact 1250-1914, Berghahn, 201:3; Michael McEachrane (ed.), Afro-Nordic Landscapes: Equality and Race in Northern Europe, Routledge, 2014; Dominic Thomas, Black France: Colonialism, Immigration and Transnationalism, Indiana University Press, 2007; Dominic Thomas (ed.), Afroeuropean Cartographies, Cambridge Scholars Publishing, 2014; Akwugo Emejulu e Francesca Sobande (eds.), To Exist is to Resist: Black Feminism in Europe, Pluto Press, 2019; e Felipe Espinoza Garrido et al., Locating African European Studies: Interventions, Intersections, Conversations, Routledge, 2019.

2. Os exemplos são diversos desde obras como Thomas F. Earle e Kate J. P. Lowe (eds.), Black Africans in Renaissance Europe, Cambridge University Press, 2005, que analisa a presença negra em diversos países, a obras que se debruçam sobre a presença negra a um nível regional, como Alan Llwyd e Glenn Jordan, Cymru Ddu/Black Wales: A History: A History of Black Welsh People, Hughes & Son, 2005.

3. Cedric J. Robinson, Black Marxism: The Making of The Black Radical Tradition, University of North Carolina Press, 2000, p. 72.

4. Ibid., P. 83

5. Robinson observa que o processo de eliminação não diz respeito apenas aos africanos. «A tendência da civilização europeia por intermédio do capitalismo não era, portanto, homogeneizar; mas diferenciar — exacerbar as diferenças regionais, subculturais e dialéticas em diferenças "raciais". Enquanto os Eslavos se transformaram em escravos naturais, o grupo racialmente inferior dominado e explorado no início da Idade Média, e os Tártaros passaram a ocupar uma posição idêntica nas cidades italianas nos finais da Idade Média, assim, na interação sistémica do capitalismo no século XVI, as populações do Terceiro Mundo começaram a preencher esta categoria em expansão de uma civilização reproduzida pelo capitalismo.» Ibid., p. 26

6. Ibid., p. 81.

7. Ibid.

8. Philippa Levine, «Is Comparative History Possible?» em History and Theory, vol. 53, n.º 3 (2014), pp. 331-347.

9. Ibid., p. 342.

10. Dienke Hondius, Blackness in Western Europe: Racial Patterns of Paternalism and Exclusion, Routledge, 2017, p. 2.

11. O paternalismo foi assunto de produtivos debates entre importantes investigadores académicos da história da escravatura nos Estados Unidos da América, como Stanley Elkins, Eugene Genovese e John Blassingame. Demonstraram como o paternalismo transpareceu e evoluiu no interior das sociedades escravagistas e como a sua implementação foi reutilizada e definida pelos norte-americanos africanos.

12. Hondius, Blackness in Western Europe, p. 2.

13. A primeira-ministra britânica Theresa May afirmou, numa conferência do Partido Conservador decorrida no dia 5 de outubro de 2016, que «se acreditarmos que somos cidadãos do mundo, somos cidadãos de lado nenhum. Não entendemos o que significa a própria palavra "cidadania"» [«if you believe you're a citizen of the world, you're a citizen of nowhere. You don't understand what the very word "citizenship" means».] «Theresa May's conference speech in full», The Telegraph, 5 de outubro de 2016, último acesso em 26 de maio de 2020.

14. David Theo Goldberg, The Threat of Race: Reflections on Racial Neoliberalism, Wiley-Blackwell, 2009, p. 21.