A propósito do Dia Mundial do Teatro, instituído em 1962 pelo Instituto Internacional de Teatro (ITI), e que se celebra esta quarta-feira, dia 27 de março, o SAPO24 foi em busca do lado b da vida dos atores. O estado da profissão de ator foi o tema da conversa com Carmo Bebiano, Joana Raio e João Miguel Mota, todos atores a trabalhar em projetos distintos e com diferentes histórias que trazem as suas visões de uma profissão muitas vezes esquecida pelos governos e pelas empresas do setor.

"Três Pancadas": a nova Newsletter com tudo sobre teatro inclusive bilhetes para espetáculos

A Newsletter "Três Pancadas" irá trazer todas as novidades do mundo do teatro, nomeadamente reportagens, crónicas e entrevistas, bem como a agenda dos próximos acontecimentos no mundo do espetáculo. Todos os meses abrirá a cortina para os palcos e as três pancadas de Molière dão início às leituras para que não se perca pitada das artes de palco.

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Carmo Bebiano, que começou a carreira em 2013 no Teatro da Malaposta e já passou pelos palcos de Nova Iorque, admite que as grandes dificuldades continuam a ser encontrar trabalho.

"O medo e a instabilidade são a nossa maior dificuldade, sendo que isso afeta muito a nossa saúde mental"Carmo Bebiano

"Isto é o oposto daquilo que sente quem tem trabalhos estáveis. A maior dificuldade de um ator é gerir a instabilidade e não ter controlo sobre o futuro. Estamos sempre a tentar fazer os nossos projetos, mas depois confrontamo-nos com o facto de não haver dinheiro e acabamos a fazer vários part-times sem certeza de nada", sublinha.

"O medo e a instabilidade são a nossa maior dificuldade, sendo que isso afeta muito a nossa saúde mental. Não sei onde vou estar e o que vou estar a fazer daqui a cinco anos, por isso não posso ter planos para o futuro", diz.

Uma visão partilhada pela colega Joana Raio, que se formou em Londres, onde viveu durante 12 anos e foi vencedora da Secção OFF do Festival Internacional de Teatro de Setúbal, em 2023, com a peça 'Voltei', estando agora em fase de pesquisa para o seu novo projeto teatral 'Break Up'.

"A maior dificuldade que tenho é ter de trabalhar em vários outros trabalhos para depois ter tempo livre para trabalhos na área artística, nomeadamente teatro, cinema, televisão e trabalhos de voz", refere.

"Depois, quando temos trabalho, temos a dificuldade de manter o nosso trabalho normal e ter de acordar cedo ou deitar-nos tarde para ensaios, por exemplo. Na semana passada trabalhei mais de 16 horas por dia", acrescenta.

Sobre os problemas específicos em Portugal, destaca a "falta de noção no geral de que tudo o que está por trás de um processo de artístico demora muito tempo e nunca é dado valor", ao que se acrescenta ao ator ter de criar as suas próprias oportunidades.

"Tenho que ser eu a produzir sozinha um espetáculo, ou seja, fazer as candidaturas a financiamento, escrever, etc.", exemplifica. "Além disso, para se conseguir apoios, mesmo os mais pequenos, é muitas vezes necessário mostrar sustentabilidade, e para isso é preciso ter contactos, ajudas gratuitas, como salas de teatro disponibilizadas e parcerias. Este ano fiz a escolha que não faço espetáculos sem pagar aos artistas", acrescenta a atriz e produtora.

João Miguel Mota, ator desde 1998 e atualmente na mais recente aposta do Teatro Meridional, em Lisboa, 'BORDÁ_LO', destaca que esta é uma profissão "cheia de rosas mas também com bastantes espinhos".

"Cada ator tem a sua experiência. Durante muito tempo nem tínhamos direito a ter contratos, agora temos. Tenho conseguido sempre trabalho em teatro, mas existem meses em que não consigo".

Ao contrário das colegas, confessa que ser do Porto se apresentou como uma dificuldade. "Eu sou do Porto e fiquei lá até 2005 no Teatro Experimental, onde era ator residente. Quando vim para Lisboa, nesse ano, foi uma fase muito difícil onde tive de servir bastante às mesas e não conhecia ninguém no setor".

Apesar disso, atualmente voltou ao Porto, e novamente ao Teatro Experimental, onde embora não tenha um contrato efetivo, confessa que vai dando aulas para pagar despesas.

Ator ou Influencer?

Uma das realidades partilhadas por ambas as atrizes foi uma nova forma de contratar, com a ascensão das redes sociais, que faz com que as produtoras prefiram figuras com mais seguidores, não olhando tanto para o talento artístico.

"Existe uma competição muito grande e não está dependente só do talento, mas também da procura nas redes sociais"Joana Raio

"Eu hoje em dia, quando faço castings, perguntam-me sempre quantos seguidores tenho no Instagram. Já cheguei ao ponto de perguntar se estão a procurar influencers ou atores. As coisas estão a juntar-se e é porque vende mais. É um facto. Ultimamente aprendo a aceitar", diz Carmo.

Já Joana Raio reforça que o trabalho nas novelas, uma alternativa aos palcos, é muitas vezes contratado assim: "Existe uma competição muito grande e não está dependente só do talento, mas também da procura nas redes sociais. Dizem-me muitas vezes que tenho talento, mas isso não chega. O ator não vale só pela arte".

Acrescenta ainda a dificuldade acrescida que o trabalho tem para as mulheres atrizes. "Por um lado, existem mais mulheres atrizes do que homens atores, e depois as produções e as histórias são mais masculinas. Na parte dos pagamentos, no geral ganhámos todos muito pouco, homens e mulheres", sublinha.

"O ator não tem de ser uma celebridade"Carmo Bebiano

No setor da cultura, confessa que o "grande cancro em Portugal" é quem gere a cultura, que na sua opinião "não são pessoas da cultura e não percebem nada de artes. É alguém que foi lá parar porque tinha de ir".

Sobre ser-se uma celebridade do Instagram, Carmo Bebiano acrescenta ainda que "a maior parte de nós não gosta, as coisas não se deviam fundir. São coisas distintas e fazer Instagram é um outro emprego". Além disso, aponta que existe hoje em dia a necessidade de "sair e conhecer pessoas em discotecas como qualquer celebridade. O ator não tem de ser uma celebridade", comenta.

O problema do financiamento

Sobre a falta de financiamento, algo que une os artistas, a resposta está nas políticas públicas. João Miguel Mota destaca a evolução que se tem feito quando se compara com os anos 90 e início dos anos 2000, em especial nas cidades, onde se faz cada vez mais espetáculos.

No caso do interior, o financiamento depende muito das câmaras municipais locais, e isso depende do orçamento disponível. "É importante ter noção que para levar arte ao interior do país o teatro tem de levar toda uma equipa e todos necessitam de ser pagos, apesar das pessoas só verem os atores no palco. Um cantor pode cantar sozinho", refere.

Joana Raio, neste momento a procurar financiamento para novos projetos, diz que os orçamentos reduzidos fazem muitas vezes com que os espetáculos fiquem pouco tempo em cena. "Existe o caso de sucesso da Força de Produção, que não é financiada pelo Estado e que consegue fazer pequenas digressões, mas devia ser capaz de muito mais e não consegue por ser neste país".

"Somos todos muito sensíveis em Portugal e a arte tem muito medo de ser criticada"Joana Raio

"Existem Câmaras que se mexem muito bem para apoiar a arte, mas devia haver uma consistência ao nível do país todo. Em Inglaterra existe, por exemplo, o organismo financiador, o Arts Council, a ir ver os espetáculos. Por cá isso não acontece. Os espetáculos nem ficam tempo suficiente para existir crítica jornalística ou do setor da arte, que acabam por ser sinopses em Portugal", aponta.

Além disso, numa nota mais pessoal aos colegas atores, encenadores e profissionais do teatro, acrescenta que: "Somos todos muito sensíveis em Portugal e a arte tem muito medo de ser criticada. Mas a crítica é muito importante para o artista evoluir".

Como se consegue dinheiro? "Patrocínios, financiamentos, o que é complicado, e até crowdfunding". "Nos filmes existe uma realidade em que nunca existe dinheiro para a pré-produção. Nos EUA recebem-se os guiões com seis meses de antecedência, aqui recebe-se duas semanas antes. Isto acontece porque ninguém percebe que é necessário este tempo para se fazer coisas com qualidade e com um verdadeiro estudo da personagem", destaca.

A colega Carmo Bebiano lança ainda uma crítica a quem atribui os financiamentos: "Temos projetos que têm todas as condições e acabam por não ser aceites, mesmo quando são temas sobre Portugal, que é o que se gosta mais de financiar por cá"."Devemos colaborar com produtoras de fora ou financiamento europeu. Em Portugal temos o ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), mas temos todo um mundo de opções", sublinha.

Sobre o teatro em particular, diz que este nunca acabará: "Irá existir sempre, com problemas, mas sempre".

Já no caso do cinema, nota o crescimento dos últimos anos, apesar de ainda sermos pequenos. "Temos o problema de, por exemplo, a nossa Netflix estar em Espanha e produzirmos muito pouco. Temos um espaço espetacular e condições de filmagem, mas ainda nos falta dinheiro e visibilidade", diz.

"Temos muitas histórias para contar à espera dos atores. O acesso a isso também será difícil, porque quem tem acesso a isso são os mesmos de sempre, conhecidos de diretores de casting, que mesmo entre eles têm de lutar por papéis muito limitados", acrescenta.

"Sempre os mesmos"

Entre os problemas apontados por todos estes atores, existe também outro que é comum, os trabalhos serem sempre entregues aos "mesmos".

"Existem menos audições do que deviam existir, as pessoas acabam por trabalhar sempre com os mesmos"João Miguel Mota

João Miguel Mota sublinha que "os atores devem fazer tudo, teatro, televisão e cinema", apesar do trabalho de audiovisual estar mais focado aqui em Lisboa.

"Existem cada vez mais atores e torna-se complicado conseguir trabalhos. Depois existem menos audições do que deviam existir, as pessoas acabam por trabalhar sempre com os mesmos", completa.

"A maior parte das audições não são abertas"Carmo Bebiano

Carmo acrescenta que, mesmo depois da pandemia, quando se começou a ver mais gente a ir ao teatro, "os problemas continuam", isto porque "são sempre as mesmas pessoas a ser chamadas para projetos". "Pode até existir mais público e oportunidades, os espetáculos estão esgotados, mas sempre com os mesmos atores", refere.

"Existe um círculo um pouco fechado em que os que são atores profissionais não conseguem entrar. A maior parte das audições não são abertas, é mais convites pessoais e por isso torna-se difícil", realça.

Apesar disso, deixa uma mensagem: "quando trabalho lembro-me que a luta faz sentido e que adoro o que faço", algo partilhado pelos três colegas.