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UM PASSEIO PELO CEMITÉRIO DOS PRAZERES (dado por Lourenço Boa Morte, doente com cancro)

Abatido, Lourenço Boa Morte caminha ao longo das alamedas de ciprestes do belo Cemitério dos Prazeres em direção ao seu derradeiro lugar no mundo. Restam-lhe poucos meses, foi essa a fatídica previsão dos médicos. As suas sexagenárias entranhas estão definitivamente perdidas. O maldito cancro alastrou a partir do fígado e avançou, qual imparável exército invasor, atacando os intestinos e o estômago. Num ritmo certo, aquele exterminador implacável aproximou-o da fase terminal sem pressa, mas também sem pausas, tal como ele agora se aproxima do «incrível jazigo dos Boa Morte», como o excêntrico mausoléu familiar foi
batizado por tios e primos.

Os Boa Morte riem-se dos seus mortos, dos três que fundaram a família há mais de cem anos e dos onze que a continuaram, com mil episódios absurdos e trágicos, espantosos ou escandalosos. Lourenço, os irmãos e os sobrinhos recordam, com alegria quase histérica, aquela saga de doidos varridos, a maravilhosa lenda dos Boa Morte, que viajaram pelas estradas tortuosas de um século de constantes mutações, que começara com a contundente queda da Monarquia e com a trágica gripe espanhola, atravessara os turbilhões da Primeira República e gerara o Estado Novo, lidara com a guerra de Espanha e com a Segunda Guerra Mundial, assistira ao princípio da Europa unida e ao 25 de Abril, e ainda inventara os automóveis, os eletrodomésticos, os telemóveis e os computadores.

«Os Boa Morte viram o mundo a mudar da varanda», costumava dizer um dos tios de Lourenço. Acompanharam as transformações lentas mas drásticas de Portugal, com paixões arrebatadoras e lutas frenéticas, mas sem protagonismos intensos. Os livros de História não iriam falar dos Boa Morte, ninguém os iria «googlar» no futuro.

– Não fizemos revoluções – murmura Lourenço. – Nem fomos celebridades do cinema, da música, da arte ou da política.

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

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Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

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À superfície, os Boa Morte eram como milhões de banais portugueses, uma estranha massa de desconhecidos que apenas havia observado, sempre no anonimato, os heróis lusitanos que transformaram o país. Os Boa Morte não haviam protagonizado a História, tinham-se limitado a correr ao longo dela, com uma elevada dose de maluqueira. Pareciam os desvairados que seguem os ciclistas profissionais numa terrível subida de montanha, a incentivá-los e a abanarem a bandeira do respetivo país. Ninguém nunca saberá o seu nome, mas sem esses histéricos anónimos a etapa não era a mesma!

Os Boa Morte eram assim, um bocado doidos mas não o suficiente para serem génios. Loucuras privadas, relembra Lourenço, parando para observar o maior jazigo do Cemitério dos Prazeres, onde está enterrado D. Pedro Holstein, Duque de Palmela, e toda a família do aristocrata. Lá dentro, encontravam-se mais de duzentos mortos.

– Talvez seja apenas um mito urbano, mas este jazigo é uma festa permanente! – exclama Lourenço.

A família dos Duques de Palmela era uma das mais antigas e célebres de Portugal e marcara o século XIX português.

Aliás, todo o Cemitério dos Prazeres – um nome lindo mas ao mesmo tempo paradoxal, para um lugar onde repousam os mortos – era um depósito de relevantes figuras da História de Portugal, gente que tinha enchido dois séculos com os seus méritos e talentos.

Já quanto aos Boa Morte, as catorze almas enfiadas naquele extravagante jazigo tinham sobretudo atazanado a vida dos seus familiares, mas nenhum deles chegara sequer a ministro! Lourenço sorri, com saudades dos tempos em que se juntavam todos, à roda da grande mesa da casa de Estremoz. Depois suspira, desalentado. O que o impressionava não era a sua morte próxima, encarava- a mesmo com uma clara aceitação, uma paz interior budista.

– Tive uma vida cheia – murmura Lourenço.

Uma infância divertida e feliz, os estudos na Escola Naval, o mar, sempre o mar, muitos anos a visitar portos e países, skipper de centenas de embarcações. Conhecia gente em Madagáscar, no Camboja e na Terra Nova, tivera dezenas de namoradas de múltiplas nacionalidades mas sempre fora livre. Fugira do amor, do casamento, dos filhos, só para poder continuar no mar, sem data para voltar ou obrigações paternais. Contudo, sempre tivera saudades da sua família, dos Boa Morte. Certa vez, no Chile, estava num bar a beber pisco sour e teve um acesso de saudades e não descansou enquanto não telefonou à avó Maria Vitória, só para lhe ouvir a voz. Noutra vez, em Newport, espantou a tristeza imaginando-se sentado à volta da grande mesa na casa de Estremoz, rodeado de primos e alarido, com mil conversas trocadas cruzando-se sobre aquele gigantesco tampo de mogno escuro, salteado de copos e pratos. Era o que lhe faltava no mar, onde havia camaradagem e mulheres, mas não a família. Gostara sempre de estar no meio dela e agora, que a hora da sua morte se aproximava, queria juntar-se de novo aos seus.

Livro: "O Cemitério dos Prazeres Eternos"

Autor: Domingos Amaral

Editora: Casa das Letras

Data de Lançamento: 14 de maio de 2024

Preço: € 18,90

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Infelizmente, o jazigo dos Boa Morte estava cheio! Alguém teria de sair para ele entrar, mas Lourenço não entendia a relutância dos irmãos, Francisco e Rita, que não aceitavam retirar dali alguns dos mortos. Só ele o queria fazer, certamente por ser o único que estava a morrer.

Quando soube que lhe restavam apenas uns meses de vida, formara-se no seu cérebro uma preocupação fixa: o jazigo dos Boa Morte tinha catorze prateleiras para caixões, todas ocupadas pelos mortos da família. Para onde iria ele?

Naquela família não havia ainda uma tradição de cremações.

Os Boa Morte não gostavam de labaredas e fugiam do fogo como o Diabo da cruz. «Quero um lugar no jazigo, quero lá o meu caixão, tenho direito a isso!», afirmara ele num recente jantar de família. Porém, a sua exigência fora olhada de soslaio pelo irmão e pela irmã, e Lourenço sentiu o que sentira ao longo da vida, que os dois não o tratavam como um Boa Morte cem por cento puro.

– Fui sempre o bastardo – resmunga.

Não era filho de Roberto Boa Morte e Maria Inês Mondego, como Francisco e Rita, ou os dois outros irmãos que já tinham morrido, José Diogo e Alice. Era a carta fora do baralho na vida do pai, que engravidara uma rapariga em Mértola e se recusara a perfilhar o rapaz, só o fazendo quando a senhora morreu e Lourenço, na altura com cinco anos, ficou sozinho no mundo.

– Temos o mesmo pai, sou um Boa Morte igual aos outros! – declara agora em voz alta, certo de que ninguém o ouve, pois o cemitério está quase vazio.

Tinha os mesmos direitos dos irmãos e, portanto, alguém teria de sair do jazigo, alguém que tivesse menos razões para estar lá enterrado.

– Ou enterrada – acrescenta.

Na verdade, de puro-sangue Boa Morte, só contava dez pessoas. Três das mulheres eram Boa Morte apenas por casamento: Maria Inês Mondego, a mãe dos seus quatro irmãos; Jacqueline, a primeira mulher do seu irmão José Diogo; e ainda Mafalda, a segunda esposa do mesmo irmão. Porém, a primeira era a mãe de Rita e Francisco e as outras duas tinham filhos ainda vivos, os sobrinhos de Lourenço. Restava assim apenas um forte candidato à saída: Nuno, o marido da sua irmã Alice. O casal morrera num terrível desastre de automóvel e havia sido enterrado junto. Contudo, Nuno apenas estivera casado com Alice um ano, não
pertencera à família Boa Morte durante muito tempo. Os pais haviam morrido e não tinha irmãos ou irmãs. Como todos gostavam das anedotas que contava, fora colocado ali.

– Serão razões suficientes para o manter no jazigo?

Os restantes inquilinos do mausoléu eram puros Boa Morte, desde o seu tio-avô Fernando, o primeiro a entrar e para quem fora construído o jazigo. O avô José Roberto e a avó Maria Vitória haviam sofrido um desgosto terrível quando Fernando Boa Morte morrera, atingido pelas balas dos fascistas espanhóis, contra quem combatera em Badajoz, durante a guerra civil de Espanha.

– Infelizmente, era comunista! – lembra Lourenço, uma paixão política que gerara forte mal-estar em certos Boa Morte. Talvez por castigo, coitado, ficou quase trinta anos sozinho no jazigo.

Fernando Boa Morte morrera em 1936 e só tivera companhia no jazigo em 1970, quando morreu Natividade, a irmã do pai de Lourenço. Depois disso, os Boa Morte haviam morrido com alguma regularidade. Na década de 1970 partiram dois, na de 1980 existiu um hiato nas entregas a Deus, mas a década de 1990 foi muito «produtiva», com o falecimento de seis familiares. Por fim, já no século XXI, haviam partido mais quatro Boa Morte, lotando o jazigo.

– Podiam-se cremar alguns…

À cremação, Rita não dera o aval, com um argumento irrefutável: os familiares tinham morrido antes dessa solução entrar na moda, seria uma maldade queimá-los agora, quando já nada podiam decidir.

– E metê-los em urnas mais pequenas? – sugerira Francisco.

A melhor decisão era colocar as ossadas de um dos mortos numa pequena urna, no chão do jazigo.

– Sim, mas quem? – questiona-se Lourenço.

Após acaloradas discussões foi aprovada a sugestão do sobrinho Carlos: Rita, Francisco e Lourenço tinham de escolher «candidatos» entre os familiares mortos e depois apresentar as respetivas biografias, recordando o que haviam feito de bom e de mau nas suas vidas. Lourenço e Francisco seriam «advogados de defesa» de cinco mortos e Rita apenas de quatro falecidos.

Naturalmente, depois do que dissera deles, Lourenço não ficou com as mulheres já referidas – Maria Inês, Jacqueline e Mafalda – nem com Nuno.

Durante uma reunião na casa de Rita, que contaria também com a presença dos sobrinhos, cada um dos três irmãos faria uma apresentação em defesa dos seus «candidatos».

Depois, os vivos votariam, dando uma bola branca se quisessem que o morto ficasse no jazigo e uma bola preta se considerassem que devia sair. Naturalmente, sendo Portugal uma democracia com regras, seria removido o familiar que tivesse recebido mais bolas pretas.

– Pelo menos, parece democrático – resmunga Lourenço.

Estava agora em frente do jazigo dos Boa Morte um estranho cubo, cujas faces exibiam vários tipos de mármores, com veios negros e avermelhados. A arquitetura geral era no estilo art deco, em voga nos anos 30 do século XX, e o mausoléu apresentava uma porta de ferro verde com vitrais no topo, que deixavam entrar a luz para o interior do jazigo embora fossem foscos.

– Vistos pelos mortos, somos estranhas figuras distorcidas, com cambiantes da cor e forma – suspira Lourenço.

Recorda o custo elevado do jazigo. O avô José Roberto, o primeiro dos Boa Morte, não poupara nos orçamentos quando mandou construir o local para sepultar o irmão.

– Mas nunca cá veio parar…

Era uma ironia da história da família: o primeiro Boa Morte, patriarca da linhagem e construtor daquele mausoléu, não estava lá enterrado! Morrera algures num barco no Brasil e o corpo nunca fora encontrado. A avó Maria Vitória chorara o marido anos a fio, como uma Penélope à espera do seu Ulisses, mas José Roberto nunca reaparecera e a custo a família havia-se rendido à evidência: o milionário fundador dos Boa Morte desaparecera para sempre.

– Ninguém fará a sua defesa, não é necessário… – suspira Lourenço, antes de listar os catorze mortos ali existentes, para estimar a probabilidade de cada um deles receber bolas pretas. – Qual será o mais forte candidato à saída?