CAPÍTULO 1

CORONADO ISLAND, CALIFÓRNIA
MAIO DE 1966

A propriedade murada e com portões dos McGrath era um mundo em si mesma, protegido e privado. À luz do crepúsculo, as janelas com pinázios da casa estilo Tudor brilhavam como pedras preciosas no meio do jardim luxuriante e cuidado. As folhas das palmeiras agitavam-se lá no alto; havia velas a flutuar na piscina e lanternas douradas suspensas dos ramos de um grande carvalho da Califórnia. Os empregados de mesa trajados de preto moviam-se por entre a multidão bem vestida, carregando bandejas de prata cheias de taças de champanhe, enquanto um trio de jazz tocava música ambiente a um canto.

Frances Grace McGrath, de vinte anos, sabia o que se esperava dela naquela noite. Ela deveria ser a imagem viva de uma jovem bem- -educada, sorridente e serena; quaisquer emoções desapropriadas deviam ser reprimidas e ocultadas, suportadas em silêncio. As lições que Frances aprendera em casa, na igreja e na Academia Feminina de St. Bernadette haviam-lhe incutido um rigoroso sentido de decoro. A agitação que assolava o país presentemente, a raiva que irrompia nas ruas das cidades e nos campus universitários, era um mundo distante e estranho para ela, tão incompreensível quanto o conflito no longínquo Vietname.

Circulou por entre os convidados enquanto bebia uma Coca-Cola gelada, tentando sorrir, parando de vez em quando para fazer conversa de circunstância com os amigos dos pais, esperando não deixar transparecer a sua preocupação. Durante todo esse tempo, o seu olhar perscrutava a multidão, a tentar localizar o irmão, que estava atrasado para a sua própria festa.

Frankie idolatrava o irmão mais velho, Finley. Haviam sido sempre inseparáveis, um par de miúdos de cabelo preto e olhos azuis com menos de dois anos de diferença, que passavam os longos verões da Califórnia sem adultos a supervisioná-los, a andar de bicicleta de uma ponta à outra da tranquila Coronado Island, raramente regressando a casa antes de anoitecer.

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Mas agora ele ia para onde ela não o podia seguir. O barulho do motor de um carro perturbou a tranquilidade da festa; ouviram-se buzinadelas ruidosas, umas atrás das outras. Frankie viu a mãe retrair-se ao ouvir aquele ruído. Bette McGrath detestava tudo o que fosse exibicionista ou vulgar e não apreciava, seguramente, que alguém anunciasse a sua presença fazendo soar uma buzina.

Instantes depois, Finley entrou pelo portão das traseiras, com o bonito rosto corado e uma mecha de cabelo encaracolado caída sobre a testa. O seu melhor amigo, Rye Walsh, tinha um braço à volta dele, mas nenhum dos dois aparentava grande firmeza no andar. Soltavam gargalhadas ébrias e seguravam-se um ao outro enquanto mais alguns amigos os seguiam tropegamente até à festa.

Impecavelmente trajada, com um vestido justo preto e o cabelo apanhado num coque majestoso, a mãe avançou em direção ao grupo de homens e mulheres jovens e risonhos. Usava as pérolas que herdara da avó, um lembrete subtil de que Bette McGrath fora em tempos Bette Alexander, dos Alexanders de Newport Beach.

— Meninos — disse na sua voz modulada, própria das escolas de boas maneiras. — Ainda bem que chegaram, finalmente.

Finley afastou-se de Rye e tentou endireitar-se.

O pai fez sinal à banda e a música parou. De repente, os sons de Coronado Island numa das últimas noites de primavera tomaram conta do cenário — o ronronar gutural do oceano, o sussurrar das folhas de palmeira lá no alto, um cão a ladrar ao fundo da rua ou na praia… O pai avançou, envergando o fato preto feito por medida, camisa branca imaculada e laço preto, segurando um cigarro numa mão e um Manhattan na outra. Com o cabelo preto curto e o queixo definido, assemelhava-se um pouco a um ex-pugilista que alcançara fama e fortuna e aprendera a vestir-se bem, o que não estava muito longe da realidade. Mesmo entre este grupo de pessoas elegantes e bem vestidas, ele e a mãe sobressaíam, irradiavam sucesso. Ela descendia de uma família rica e sempre ocupara o topo da pirâmide social; ele subira a pulso até parar com segurança a seu lado.

— Amigos, família, recém-finalistas da academia — começou o pai com o seu vozeirão. Quando Frankie era miúda, ele ainda tinha vestígios do sotaque irlandês, que se esforçara muito por eliminar. Apregoava com frequência a sua própria mitologia imigrante, uma história de investimento pessoal e trabalho árduo, mas raramente mencionava a sorte e a oportunidade que advinham do facto de ter casado com a filha do patrão, mas todos o sabiam. Também sabiam que, depois da morte dos pais da mãe, o pai mais do que triplicara a sua fortuna com o seu empenho em desenvolver projetos imobiliários na Califórnia.

Ele pôs um braço à volta da sua elegante mulher e puxou-a para si o mais que ela permitia em público.

— Estamos gratos por terem vindo ajudar-nos a desejar boa viagem ao nosso filho, Finley. — O pai sorriu. — Acabou-se o pagamento de fianças na esquadra de Coronado às duas da manhã, depois de uma ridícula corrida de carros.

Livro: "As Mulheres"

Autor: Kristin Hannah

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 14 de março de 2024

Preço: € 20,90

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Ouviram-se algumas gargalhadas. Toda a gente presente naquela festa conhecia o trajeto sinuoso que Finley percorrera até à idade adulta. Tinha sido desde sempre o típico «menino bonito», uma criança rebelde capaz de fazer derreter o coração mais empedernido. As pessoas riam-se das suas piadas; as raparigas seguiam-no para todo o lado. Toda a gente adorava Finley, mas a maioria estava de acordo em considerá-lo um pouco difícil. Ficara retido no quarto ano, mais pelas travessuras constantes do que por qualquer outra coisa. Por vezes, era desrespeitoso na igreja e gostava do tipo de rapariga que usava saias curtas e trazia cigarros na mala.

Quando as risadas terminaram, o pai prosseguiu:

— Um brinde ao Finley e à sua grande aventura. Temos orgulho em ti, filho!

Os empregados de mesa apareceram com garrafas de Dom Pérignon e serviram mais champanhe; o tilintar do vidro no vidro encheu o ar. Os convidados rodearam Finley. Os homens felicitaram-no com palmadinhas nas costas; as mulheres jovens aproximavam-se, disputando a sua atenção.

O pai fez um gesto com a mão e a música recomeçou.

Sentindo-se excluída, Frankie entrou em casa e passou pela grande cozinha, onde os fornecedores da comida estavam atarefados a colocar canapés em bandejas.

Escondeu-se no escritório do pai. Em pequena, era o seu lugar predileto. Cadeirões de couro acolchoado, banquetas, duas paredes de livros, uma secretária enorme. Acendeu a luz. A divisão cheirava a couro envelhecido e a charuto, com vestígios de um aftershave caro. Em cima da secretária, pilhas muito bem organizadas de licenças de construção e projetos de arquitetura.

Uma parede inteira do escritório era dedicada à história da família. Fotografias emolduradas que a mãe herdara dos pais e até algumas que o pai trouxera consigo da Irlanda. Havia uma fotografia do bisavô McGrath, com a farda de soldado, a fazer continência para a câmara. Ao lado dessa fotografia, estava uma medalha de guerra emoldurada com que o seu avô Francis fora galardoado na Primeira Guerra Mundial. A fotografia do casamento dos pais estava posicionada entre o Purple Heart emoldurado do avô Alexander e um recorte de jornal com uma fotografia do navio onde servira a entrar no porto, no fim da guerra. Não havia fotografias do pai de farda. Para sua grande vergonha, havia sido considerado inapto para o serviço militar. Era algo que ele lamentava em privado, apenas junto da sua família e só quando tinha estado a beber. Depois da guerra, convencera o avô Alexander a começar a construir casas a preços acessíveis em San Diego para os veteranos que regressavam da guerra. O pai chamava-lhe o seu contributo para o esforço de guerra e tinha sido espetacularmente bem-sucedido. Nas suas conversas, manifestava sempre um tal «orgulho militar» que, com o tempo, toda a gente em Coronado parecia ter-se esquecido de que ele não combatera. Ainda não havia fotografias dos seus filhos. O pai acreditava que tinham de conquistar o direito a figurar naquela parede.

Frankie ouviu a porta a abrir discretamente atrás dela e alguém disse:

— Oh, desculpa! Não queria incomodar.

Virou-se e viu Rye Walsh na soleira da porta. Segurava um cocktail numa mão e um maço de cigarros Old Gold na outra. Andava seguramente à procura de um sítio calmo para fumar.

— Estou a esconder-me da festa — disse ela. — Acho que não estou com muita vontade de celebrar.

Ele deixou a porta aberta atrás de si.

— Eu estava a fazer a mesma coisa, suponho. Provavelmente, não te lembras de mim…

— Joseph Ryerson Walsh, conhecido por Rye. Como o whisky — disse Frankie, tentando sorrir. Tinha sido assim que ele se apresentara no verão anterior. — Porque te estás a esconder? Tu e o Fin são unha com carne. Ambos adoram uma boa festa.

À medida que Rye se aproximava, o coração de Frankie vacilou ligeiramente. Ele já tivera esse efeito nela no primeiro encontro, mas nunca tinham conversado realmente. Não sabia o que lhe dizer agora, quando se sentia um pouco desgostosa. Sozinha.

— Vou sentir a falta dele — disse ele baixinho.

Ela sentiu as lágrimas a arder nos olhos e afastou-se rapidamente, ficando de frente para a parede das recordações; ele foi-se pôr ao seu lado. Olharam fixamente para as fotografias de família e para as relíquias. Homens de farda, mulheres com vestidos de casamento, medalhas por atos de bravura e ferimentos sofridos, uma bandeira americana dobrada em triângulo e emoldurada que tinha sido dada à sua avó paterna.

— Como é que não há fotografias de mulheres aqui, a não ser as de casamento? — perguntou Rye.

— É uma parede de heróis, para homenagear os sacrifícios que a nossa família fez para servir o país.

Ele acendeu um cigarro.

— As mulheres também podem ser heroínas.

Frankie riu-se.

— Qual é a graça?

Ela virou-se para ele e limpou as lágrimas dos olhos.

— Eu… bem… não estás a querer dizer…

— Sim — disse ele, olhando para ela. Não se conseguia lembrar de um homem ter olhado para si alguma vez daquela maneira, de uma forma tão intensa. Fê-la ficar sem fôlego.

— Estou a falar a sério, Frankie. Estamos em 1966. O mundo inteiro está a mudar.

Algumas horas mais tarde, quando os convidados começaram a dispersar educadamente, Frankie deu por si ainda a pensar em Rye e no que ele dissera.

As mulheres também podem ser heroínas.

Nunca ninguém lhe dissera tal coisa. Nem os professores em St. Bernadette, nem os pais. Nem mesmo Finley. Porque é que nunca lhe ocorrera que uma rapariga, uma mulher, poderia ter lugar na parede do escritório do pai por ter feito algo heroico ou importante, que uma mulher poderia inventar ou descobrir alguma coisa ou ser enfermeira no campo de batalha, poderia literalmente salvar vidas?

Essa ideia foi como um terramoto, transformando radicalmente a sua visão resguardada do mundo e de si própria. Levara anos a ouvir as freiras, as professoras e a mãe dizerem-lhe que a enfermagem era uma profissão excelente para uma mulher.

Professora. Enfermeira. Secretária. Estes eram futuros aceitáveis para uma rapariga como ela. Ainda na semana anterior a mãe ouvira Frankie falar sobre as suas dificuldades em Biologia Avançada e dissera calmamente: Quem quer saber de rãs, Frances? Tu só vais ser enfermeira até te casares. A propósito, está na altura de começares a pensar nisso. Pára com isso de fazer as cadeiras em menos tempo e abranda o ritmo. Que importância tem terminares o curso mais cedo? Precisas de namorar mais. Frankie tinha aprendido a acreditar que o seu trabalho era ser uma boa dona de casa, criar filhos bem-educados e manter um lar acolhedor. No seu liceu católico, tinham passado dias a aprender como passar a ferro na perfeição casas de botão, a dobrar um guardanapo de forma precisa e a pôr uma mesa elegante. Na faculdade feminina de San Diego, não havia grande rebeldia entre as suas colegas e amigas. As raparigas riam-se de estar a fazer um curso para arranjar marido. A própria escolha de se licenciar em enfermagem não exigira grande introspeção; a única coisa em que realmente se focara era em tirar boas notas e deixar os pais orgulhosos.

Enquanto os músicos guardavam os seus instrumentos e os empregados de mesa começavam a levar os copos vazios, Frankie descalçou as sandálias, saiu do jardim e atravessou a deserta Ocean Boulevard, a rua larga e asfaltada que separava a casa dos pais da praia.

O areal dourado de Coronado Beach espraiava-se à sua frente. À esquerda, ficava o famoso Hotel del Coronado e, à direita, a grande Base Aérea Naval de North Island, que fora recentemente reconhecida como berço da aviação naval.

A brisa fria da noite fustigava-lhe o cabelo ripado cortado à altura do queixo, mas não conseguia fazer frente à camada de laca que mantinha todas as madeixas no sítio.

Sentou-se na areia fria, pôs os braços à volta dos joelhos dobrados e ficou a olhar para as ondas. Estava lua cheia. Não muito longe, uma fogueira na praia produzia um brilho alaranjado; o cheiro a fumo pairava no ar noturno.

Como é que uma mulher fazia para abrir o seu mundo? Como é que iniciava uma viagem para a qual não fora convidada? Para Finley, era fácil; tinham-lhe traçado o caminho. Ele ia fazer o que todos os homens McGrath e Alexander faziam: servir o seu país com honra e depois tomar conta do negócio imobiliário da família. Nunca ninguém sugerira qualquer futuro para Frankie para lá do casamento e da maternidade.

Ouviu risos atrás de si e o som de pés a correr. Uma jovem loura descalçou os sapatos à beira da água e chapinhou na rebentação. Rye seguiu-a, a rir, sem se dar sequer ao trabalho de se descalçar. Alguém cantava «Walk Like a Man» fora de tom.

Finley sentou-se ao lado de Frankie e deixou-se cair ebriamente sobre ela.

— Onde te meteste a noite inteira, boneca? Senti a tua falta.

— Olá, Fin — disse baixinho. Encostada a ele, recordou as suas vidas naquela praia; em pequenos, tinham construído primorosos castelos de areia e comprado sorvetes na carrinha de gelados estridente que percorria a Ocean Boulevard de um lado para o outro durante o verão. Tinham passado longas horas em cima das suas pranchas de surf, com os pés a baloiçar de lado, a conversar sob o sol abrasador enquanto esperavam pela onda certa, partilhando os seus segredos mais íntimos.

Juntos, sempre. Melhores amigos.

Ela sabia do que ele precisava agora; devia dizer a Fin que tinha orgulho nele e despedir-se com um sorriso, mas não foi capaz. Nunca tinham mentido um ao outro. Não parecia boa altura para começar a fazê-lo.

— Fin, tens a certeza de que deves ir para o Vietname?

— Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti; pergunta o que podes fazer pelo teu país.

Frankie suspirou. Ela e Finley tinham idolatrado o presidente Kennedy. As suas palavras significavam alguma coisa para eles, por isso, como poderia argumentar?

— Eu sei, mas…

— Não é perigoso, Frankie. Confia em mim. Fiz o curso na Academia Naval, sou um oficial com uma missão fácil num navio. Estarei de regresso num abrir e fechar de olhos. Mal terás tempo para sentir a minha falta.

Toda a gente dizia a mesma coisa: o comunismo era um mal que tinha de ser travado; estes eram os anos da Guerra Fria. Tempos perigosos. Se um grande homem como o presidente Kennedy podia ser alvejado em plena luz do dia por um comunista em Dallas, como é que qualquer americano podia sentir-se seguro? Toda a gente era de opinião de que não se podia deixar o comunismo florescer na Ásia, e o Vietname era o local para o impedir.

Os noticiários da noite mostravam soldados sorridentes a marchar em grupo através da selva vietnamita e a mostrar o polegar para cima aos jornalistas. Sem derramamento de sangue.

Finley pôs um braço à volta dela.

— Vou ter saudades tuas, Pequenina — disse. Frankie ouviu o fraquejar da sua voz e soube que ele estava com medo de partir.

Teria andado a esconder aquele receio só dela ou a reprimi-lo a si próprio?

E ali estavam eles: o medo e a preocupação que ela tentara reprimir e ignorar a noite inteira. De repente, tornaram-se insustentáveis. Agora, não havia forma de lhes escapar.

O seu irmão ia para a guerra.