O calendário marcava o dia 25 de abril de 1974. Maria do Carmo acordou naquela manhã de quinta-feira e cumpriu a rotina de sempre. Tinha 35 anos e já três filhos, a mais nova com oito anos. Vivia, como ainda hoje, numa quinta no concelho de Torres Vedras, onde foi caseira durante décadas.

Em Lisboa, a revolução fervilhava. Mas no campo a vida acontecia como habitualmente. “Estava em casa, a tomar conta de tudo. A cozinhar, que era o que eu tinha de fazer. O meu marido foi às seis da manhã para a feira da Malveira, vender flores. Coitado, tinha de vender alguma coisa”, começa por contar ao SAPO24.

"Veio cá um homem ao portão ver se eu tinha cravos. Tinha ali uns, fui lá e apanhei-os"

As flores seriam aquelas que ainda hoje são famosas no dia em questão: atrás da quinta, onde agora se veem vinhas, existiu uma estufa onde eram produzidos cravos. “Chegou à feira e vendeu tudo. Naquele dia eram cravos de todas as cores, quem é que adivinhava que isto vinha a dar? Vendeu tudo, ficou contente. Tinha o dinheiro, às vezes era preciso estar lá até às tantas”, recordou, irrequieta no seu cadeirão. “Nesse dia foi sozinho com o trator. A essas coisas eu nunca fui, ficava em casa. As mulheres não iam”.

Mas a quinta tinha um portão verde, sempre aberto para a estrada nacional. E, nesse dia, foi a ponte para a revolução que despontava. “Veio cá um homem ao portão ver se eu tinha cravos. Tinha ali uns, fui lá e apanhei-os. Estavam no canteiro da casa das patroas, ao pé de um limoeiro. Até os dos canteiros foram. Levou-os todos. Fiquei com os canteiros vazios, mas também com o dinheiro dos cravos. Naquele momento não se sabia o que estava a acontecer”.

“Eu tinha cravos em casa porque gostava de plantar. Só trabalhava na estufa quando precisavam de mais gente, muito de vez em quando. Quem mandava era uma senhora de fora. Era estrangeira, naquela altura não ficava na cabeça o nome, a gente queria era ganhar dinheiro. Ela era francesa, chamavam-lhe Madame, era uma senhora muito faladora”, explicou a fazer gestos para o lado onde seria a estufa.

Pela proximidade com o local, Maria do Carmo lembra-se da atitude dos trabalhadores naquele 25 de abril de 1974. “Todos os homens que estavam na estufa abalaram quando ouviram o que estava a acontecer. Abalou tudo, mulheres também. Tudo quanto havia ali acabou assim que se percebeu o que estava a acontecer”.

Gina era uma das trabalhadoras da estufa, onde trabalhou cerca de cinco anos. Ao SAPO24, descreve a sua rotina. “Fazia de tudo. Púnhamos a planta, depois sachávamos, mondávamos. Desorelhávamos os cravos, era assim que se chamava quando se tirava aqueles rebentos pequenos, para depois dar um cravo maior”.

Mas aquele dia foi atípico. “Lembro-me que andávamos lá a trabalhar e aquilo era uma confusão e um medo. Sabíamos o que se estava a passar em Lisboa através dos caseiros, que ouviam na rádio. Nós não tínhamos como saber e eles contavam”.

"A estufa tinha cravos brancos, amarelos, e chegou a um ponto em que eram só encarnados"

“Diziam que aquilo estava muito mal em Lisboa, que era uma grande revolução. Não sabiam no que ia dar. Não tínhamos televisões, não tínhamos nada nessa altura. Tínhamos medo que viesse a ser uma guerra. Se calhar era a nossa ignorância, não nos estávamos a aperceber que era para a liberdade. Só tínhamos medo da guerra”, confidencia. “Depois começámos a ouvir que era tudo para o bem, para a liberdade das pessoas. Não era aquela guerra de que tínhamos receio”.

E, dali para a frente, o medo foi embora e a tradição ficou: “quando era na altura do 25 de Abril vendia-se muito cravo vermelho, era sempre o que era mais procurado”, recorda Gina.

Maria do Carmo partilha essas memórias. Depois de 1974, a estufa aumentou. “Cravos, cravos, cravos. Nos anos a seguir vendia-se muito. A estufa tinha cravos brancos, amarelos, e chegou a um ponto em que eram só encarnados”.

Mas o tempo de mudança também se aplicou às pessoas e à forma de trabalhar — mesmo na aldeia a revolução trouxe evolução. “Até aqui na estufa tinham sindicatos. Muita coisa acabou. Houve despedimentos, não queriam trabalhar. Os homens chegavam de manhã e punham-se ali encostados à porta, não queriam fazer nenhum. Para quem era patrão foi mau”.

Depois dos cravos, a roupa nova e a comida na mesa

A 25 de abril de 1974, a venda dos cravos de João, marido de Maria do Carmo, foi a mais rápida de sempre. Na época, ficar com o trator vazio significava ter a carteira com o suficiente para enfeirar. E foi isso que fez.

Neste caso, as histórias chegam por quem era mais novo. Porque o início da liberdade foi mais do que o medo, a mudança na estufa e os canteiros vazios. Para Nazaré, a filha mais nova, a liberdade cheirava a roupa para estrear e a comida na mesa, pelas flores vendidas até ao fim.

“Eu tinha oito anos. Há coisas que não me lembro, mas isto ficou. O meu pai trouxe-me umas calças nesse dia e mais qualquer coisa para a minha irmã. Lembro-me perfeitamente das calças! É o que se usa agora outra vez, estas malhas assim finas, com um vinco à frente. Mas eu sempre gostei foi de ganga”, conta entre risos.

As compras não ficaram por ali. “Vendeu os cravos, mas trouxe logo coisas para casa. Trouxe carne, trouxe peixe, esse género de alimentos”, recorda.

Regressado a casa, o portão fechou-se, como se fecham os olhos quando têm medo. Era a revolução dos cravos. Os pequenos faziam-se grandes e Nazaré lembra-se disso.

"Queriam roubar os terrenos às patroas"

“Pouco depois de se saber da revolução bateram aqui ao portão, para dizerem ao meu pai para não deixar entrar cá mais os donos. A quinta era dividida em rendeiros e eles queriam ficar com a parte de que tomavam conta, que eles amanhavam. Queriam roubar os terrenos às patroas”, conta. “Mas ele disse que não mexia em nada. Queriam roubar tudo, as fazendas e o que havia. Só se calaram quando ele disse que dava um tiro a cada um. Não dava nada, mas dava de boca e resultava”, completou.

Mesmo assim, a história repetiu-se. Os anseios de liberdade continuaram. “Dias depois apareceu outro homem, queria começar a fazer vinho a martelo. Era vinho de candonga, com mais açúcar, com mais água para crescer mais. Era aldrabado. Mas o meu pai quase expulsou o homem daqui para fora. Ele não queria prejudicar as donas”.

A memória do vinho misturado com água desperta Maria do Carmo. “Vinha cá um leiteiro trazer leite e também queria conversa. Dizia ‘Ó João, tu não sejas parvo. Ficas com uma coisa [a quinta] aqui, não sejas parvo’. Ele dizia que eles tinham muito e nós não tínhamos nada. Mas o meu marido passou aqui muito e depois contou às patroas, teve de contar”, recordou, com a calma de quem nunca quis nada do que não era seu.

"Comecei a ver os tropas todos a fugirem"

Com a revolução, o medo de lançar foguetes na festa

Lurdes, irmã de Nazaré, tinha estado num baile na noite de quarta para quinta-feira, numa aldeia próxima de casa. “Tinha 13 anos. Comecei a ver os tropas todos a fugirem, sem perceber o porquê. Depois dizia-se que tinham recebido um telegrama de madrugada”, diz ao SAPO24.

E não foi a única a aperceber-se de algo diferente a acontecer. Gabriela era filha do festeiro daquele ano e também recorda a confusão naquelas primeiras horas de revolução. Grávida, esteve com o marido no baile e deitou-se tarde, pelo que se lembra do que na altura pareceu não ter sentido. “Algumas pessoas comentaram que ouviram músicas na rádio que acharam esquisitas àquela hora da noite, só depois percebemos que eram as senhas do 25 de Abril. Desligaram porque não gostavam das músicas, se tivessem continuado tinham ouvido mais qualquer coisa”, frisa.

"A minha mãe achou que o marido ia ser preso por ter deitado os foguetes"

Mas de manhã é que chegou a aflição. Tal como na estufa, também na festa o medo reinava. “O meu pai começou a deitar foguetes no largo da capela, já na quinta-feira, e um senhor que era cabo-chefe veio à janela dizer-lhe que não o podia fazer, por causa da revolução em Lisboa. Parou os foguetes e foi para casa. A minha mãe teve uma apoquentação tão grande, tão grande... falou tanta vez naquilo, achou que o marido ia ser preso por ter deitado os foguetes”.

Para Gabriela, foram também momentos tensos. “Ainda morava na casa dos meus pais. Era uma casa muito alta e ele chamou por mim na escada para o primeiro andar e contou que estava a haver uma revolução em Lisboa. Fiquei muito aflita, lembrei-me logo do que tinha na barriga”.

Porém, nada de mal havia de chegar à aldeia. Já com os ecos da revolução bem assentes, Gabriela e a família saíram incólumes. Quanto a Lurdes, os pais mandaram-na regressar a casa, onde a aguardavam uns ténis novos, fruto da venda dos cravos. Apesar disso, o que lhe ficou foram as imagens daquele dia. “Andávamos todos à procura na televisão, para ver o que dava. Queríamos ver os revolucionários todos e o que estava a acontecer. Não era tudo no imediato como hoje, mas no campo também queríamos estar na história”.