A partir da segunda metade do século XIX, o socialismo divide-se em várias correntes. Uma é aquela que está na origem da social-democracia contemporânea, dos partidos sociais-democratas e socialistas atuais.

Em Portugal, uma excentricidade: não há outros partidos de centro-direita na Europa que utilizem o nome social-democrata. O conceito de social-democracia associado ao PSD é uma especificidade portuguesa que nada tem a ver com a história global do socialismo e da social-democracia.

Ao longo do tempo, os partidos de centro-direita na Europa e os partidos de centro-esquerda foram assumindo algumas dinâmicas de consenso, a mais importante, e tem origens de esquerda e de direita, é a do Estado social. Nesta matéria, PS e PSD têm pontos de convergência.

António Costa Pinto, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade e Lisboa e professor de Ciência Política na Universidade Lusófona, fala de socialismo e também da estratégia de "abraço de urso" do PS à esquerda, que "não alterou um miligrama do posicionamento do Partido Socialista, antes pelo contrário, quem se arrependeu de ter ido nesses acordos foi o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda".

Começamos pelo princípio: o que é o socialismo?

O socialismo é uma corrente de pensamento que animou movimentos políticos e sociais que ao longo da segunda metade do século XIX e de todo o século XX mobilizaram milhões de cidadãos em todo o mundo.

Enquanto ideologia, o socialismo nasce numa etapa particularmente complexa do desenvolvimento do capitalismo, a fase da industrialização, da proletarização, de uma grande dinâmica de mudança social, de um grande aumento da desigualdade social. E o socialismo surge como utopia de igualdade, que tenta ultrapassar o pensamento liberal e individualista a favor de uma sociedade mais solidária.

Os primeiros socialistas são socialistas utópicos. São socialistas que, no início do século XIX, pensam uma sociedade mais igualitária, diminuindo, inclusivamente, muitas vezes o peso do Estado e propondo que o coletivo esteja acima do individual. E, a partir daí, vamos ter níveis diferentes de abolição da propriedade privada enquanto base da desigualdade social.

Ou seja, o comunismo, de que já aqui falámos, é apenas uma das correntes que derivam do socialismo.

O comunismo existe enquanto ideologia enquanto componente que se vai demarcar do socialismo. Mas o socialismo no século XIX, ao longo do século XIX, vai dar origem a várias correntes políticas. A primeira fixação do socialismo diretamente ligada ao nascimento dos partidos operários, que vão ter um papel fundamental na construção das democracias contemporâneas, vai ser a Primeira Internacional, na qual Karl Marx e Friedrich Engels já são os proponentes fundamentais. Mas Marx e Engels vão ser ideólogos fundamentais do socialismo e não especificamente do comunismo, entendido aqui enquanto partido, movimentos, regimes políticos.

O que interessa salientar é que, a partir da segunda metade do século XIX, o socialismo divide-se em várias correntes. Uma corrente é aquela que está na origem da social-democracia contemporânea, dos partidos sociais-democratas e socialistas contemporâneos, que são aqueles que se vão adaptar à democracia liberal, vão ser, aliás, os grandes agente da democracia liberal, por exemplo, o Partido Trabalhista inglês, que representou uma frente na política dos sindicatos.

O Partido Trabalhista inglês, enquanto um dos primeiros partidos socialistas democráticos, nasce de uma frente política dos sindicatos ingleses que, enquanto sociedade industrial, evidentemente, foi caracterizada por uma grande mobilidade e grande desigualdade social.

Portanto, a partir da Primeira Internacional vamos ter movimentos políticos e correntes ideológicas que se vão separando. De um lado vamos ter o socialismo revolucionário, alguns segmentos do socialismo revolucionário vão dar os primeiros partidos comunistas, e do outro lado vamos ter, a partir da chamada Segunda Internacional, os partidos políticos que vão aceitar os fundamentos da democracia liberal e, mais, vão ser agentes principais da democracia liberal (isto é um ponto extremamente importante que hoje se desconhece, mas não interessa agora). Porquê? Porque eles vão ser os instrumentos do alargamento da participação política.

Ao contrário do que se pode pensar, o liberalismo não era democrático. O liberalismo tinha uma enorme desconfiança das massas. O liberalismo era elitista. A massa ignóbil, operária, inculta, analfabeta, não tinha sequer direito de voto.

Os partidos socialistas - em Portugal isso não acontece porque é um partido republicano -, vão ser justamente os grandes instrumentos políticos que unem direitos sociais com direitos políticos.

Uma parte da família socialista vai ainda durante muitos anos, bastantes anos, utilizar versões reformistas do marxismo. Uma coisa são os conceitos tal como fizeram vida e prática, outra coisa é a vida política. O marxismo dá origem ao comunismo como dá origem a muitos outros movimentos, neste caso como o movimento socialista. Marx tinha pensado na sociedade comunista como a sociedade igualitária do futuro.

Os partidos socialistas vão progressivamente tentar conciliar direitos sociais através de uma função redistribuidora do Estado que corrige, digamos assim, a dinâmica da evolução da economia de mercado e do capitalismo.

O socialismo, aqui em termos ideológicos, vai ter um conjunto muito diverso de famílias políticas e de movimentos políticos. Ou seja, por um lado vamos ter o movimento comunista internacional, por outro lado vamos ter, fundamentalmente nos países desenvolvidos - é muito importante salientá-lo -, na Europa, nos Estados Unidos, no hemisfério norte e nalgumas áreas do hemisfério sul mais ligadas ao mundo desenvolvido (Austrália e mais tarde alguns países da América Latina) -, o movimento socialista diretamente associado à integração do movimento operário e das classes baixas no funcionamento do sistema político democrático, na chamada primeira onda de democratizações, que é aquela do início do século XX, e vamos te muitas variantes do socialismo marxista, do socialismo revolucionário, algumas das quais nada têm a ver com o movimento comunista, não têm a ver com a social-democracia, e que vão povoar o pensamento político à esquerda, emancipatório, nalguns casos anti-capitalista, noutros casos de reforma do capitalismo, que vai marcar um conjunto sem fim de ideólogos da esquerda do leque político.

Socialismo e social-democracia e o caso específico de Portugal. Pode explicar o que une e o separa estes dois conceitos?

Sob o ponto de vista estritamente político, existe uma conjunção entre socialismo e social-democracia. Tem mais a ver com a expressão do que com o conteúdo ideológico.

A cultura política alemã utiliza o conceito de social-democracia, como nórdico, e a França, a Itália, a Península Ibérica e outras democracias continuam a utilizar fundamentalmente o conceito de socialismo, tal como o socialismo na Grã-Bretanha é, basicamente, associado ao trabalhismo, ao movimento do trabalho.

Só na década de 50 do século XX é que estes partidos políticos herdeiros da Segunda Internacional, aqueles que foram derrotados também pelo nazismo na Alemanha, como o Partido Social Democrata alemão ou o Partido Socialista italiano - curiosamente o fascismo italiano nasce a partir de correntes do socialismo revolucionário italiano, portanto o mundo ideológico é bem mais diferente do que a canalização em partidos políticos -, vai abandonar o marxismo ideologicamente, na famosa Conferência de Bad Godesberg, e vai estruturar-se politicamente enquanto família socialista e social-democrata a seguir à Segunda Guerra Mundial. Tal como na Europa se estrutura a família política democrata-cristã, para dar o exemplo de outras famílias ideológicas, que, neste caso, provém do chamado catolicismo social.

Portanto, o socialismo está indissociavelmente ligado, inicialmente, ao desenvolvimento do capitalismo e à Revolução Industrial que está na base das sociedades contemporâneas modernas, nasce enquanto desafio de criar uma sociedade mais igualitária e anti-individualista, tem ramos que vão pôr em causa, como é evidente, tentar ultrapassar a democracia liberal em nome de uma sociedade igualitária, e tem, depois, o fundamental do que é hoje a família socialista e social-democrata no mundo contemporâneo, que concilia com a democracia a tentativa, o modelo ideológico de uma sociedade mais igualitária.

No fundo, a família socialista europeia e não europeia, sob o ponto de vista ideológico, é aquela que tenta associar a democracia liberal com ideais de uma sociedade mais igualitária. É o célebre desafio da Revolução Francesa: liberdade e igualdade.

A pergunta era também porque as pessoas acham estranho quando hoje ouvem os políticos dizer, da esquerda à direita, que são todos sociais-democratas. Queria falar do caso específico de Portugal.

Ah, explico rapidamente. O conceito de social-democracia associado ao PSD em 1974 é uma especificidade portuguesa que nada tem a ver com esta história global do socialismo e da social-democracia.

Tem a ver com o facto de existir aqui um ponto importante: o Partido Popular Democrático [PPD]-PSD surge de um setor reformista, que vai progressivamente ser um setor anti-autoritário na fase final da ditadura.

Em 1974, a transição portuguesa para a democracia é uma transição por ruptura, um grande estigma anti-autoritário, e os novos partidos que vão representar o centro-direita, nomeadamente o PSD de Sá Carneiro, utilizam um conceito de social-democracia, o PSD tenta inclusivamente aderir à família política socialista e social-democrata europeia, mas o Partido Socialista já lá estava desde 1973 e, portanto, manteve no fundamental o nome, como referência especificamente portuguesa. Não há outros partidos de centro-direita na Europa que utilizem o nome social-democrata.

E, dentro dos tais compartimentos estanques em que gostamos de pôr os partidos, o que distingue e o que aproxima PS e PSD?

Isso já remete para outro tema que não tem a ver com ideologias. Nas democracias ocidentais, os partidos de centro-direita e de centro-esquerda, a família democrata-cristã e, por exemplo, a família social-democrata, foram convergindo para o centro e, portanto, o centro-direita diminuiu a sua dimensão liberal de direita e a família socialista abandonou alguns princípios mais estatistas que tinha no seu programa político, e isto dá origem, como é evidente, a alguma convergência.

Ou seja, quando falamos no Serviço Nacional de Saúde, quando falamos na escola pública, quando falamos inclusivamente na intervenção do Estado, não apenas em conjunturas de crise, onde já sabemos que o Estado vai, por razões óbvias, intervir, incluindo no setor privado, para manter a economia a funcionar - segundo o pensamento estrito liberal de direita, em qualquer crise do sistema bancário deixava-se o sistema bancário cair, como na crise de 1929 nos Estados Unidos.

O que quero dizer é que, historicamente, os partidos de centro-direita na Europa e os partidos de centro-esquerda foram assumindo algumas dinâmicas de consenso. A dinâmica mais importante de consenso, que, aliás, tem origens de esquerda e de direita, é o chamado Estado social. O Estado social agora entendido enquanto o Estado dar e assumir funções ligadas ao mercado de trabalho, ligadas às pensões de reforma, ligadas à assistência social, nasce na Europa à direita - porque o Estado social nasce na Alemanha, associado a Bismarck -, e nasce, depois, enquanto reivindicação de esquerda. Mas, portanto, obviamente o PS e o PSD, no caso português, têm alguns pontos de consenso.

O socialismo do PS de Pedro Nuno Santos é igual ao socialismo do PS de Mário Soares?

É exatamente igual, não tem diferença nenhuma. Os partidos socialistas da Europa do sul não têm a mesma história dos partidos socialistas europeus. São partidos muito recentes. O Partido Socialista português foi criado em 1973, nada tem a ver com o velho Partido Socialista francês, que provém do período entre as duas guerras mundiais. São partidos criados, fundamentalmente, por elites de oposição ao regime autoritário, de classes médias, são partidos que não têm nem nunca tiveram ligações ao movimento social, aos sindicatos, como o Partido Trabalhista britânico.

A ligação do Partido Socialista português aos sindicatos provém de 1975, da criação da UGT, com o apoio da família social-democrata europeia, em plena transição para a democracia portuguesa e até com uma dinâmica anti-comunista, para contrariar a hegemonia da Intersindical.

Mas o mais interessante no caso português é que, justamente, o Partido Socialista português, ao contrário, por exemplo, do Partido Trabalhista britânico e doutros, nunca teve grupos organizados mais à direita ou mais à esquerda.

Portanto, o Partido Socialista, sob esse ponto de vista, não tem diferenças. Sei que nos debates atuais existe essa questão, é uma coisa que aparece no mundo mediático, muitas vezes nalguma superficialidade, perdoe-me a expressão, do este está mais ligado à esquerda, aquele mais à direita... Nada. Pedro Nuno Santos provém do mainstream do Partido Socialista, nasceu da JS [Juventude Socialista], exatamente como o presidente do PSD nasceu da JSD [Juventude Social Democrata].

Uma coisa que carateriza o Partido Socialista, sob esse ponto de vista, ao contrário de outros, porque tem menos história, porque a sua história é muito recente, é que não tem tendências organizadas que coincidem com fraturas ideológicas no seu interior.

Quer dizer que a geringonça, esta ligação à esquerda, ao Bloco de Esquerda, ao PCP, não é uma coisa contranatura?

Nem nada que se pareça. A tensão entre a família socialista e social-democrata e a esquerda radical e a família comunista, como é evidente, tem tensões, tal como à direita. Por exemplo, o Partido Social Democrata alemão já esteve em coligação com Os Verdes, que era um partido de esquerda radical. O mesmo no Partido Democrático italiano.

Ou seja, no caso português, até, qual foi o vencedor dessa estratégia de abraço de urso? O Partido Socialista. Porquê? Porque essa estratégia de aliança à esquerda não alterou um miligrama do posicionamento do Partido Socialista, antes pelo contrário, como a história eleitoral portuguesa denota, quem se arrependeu de ter ido nesses acordos foi o Partido Comunista Português e foi o Bloco de Esquerda.

Para terminar, há uma frase muito citada do preâmbulo da Constituição da República Portuguesa, aquela parte de "abrir caminho a uma sociedade socialista".

Esse é um legado do 25 de Abril e da transição democrática. É um legado, com uma grande radicalidade de movimentos sociais, com uma grande preponderância das diversas famílias do velho socialismo, da extrema-esquerda, do maoísmo, do trotskismo, do Partido Comunista, na Constituinte, que, justamente, com uma posição pragmática do Partido Socialista português e do Partido Social Democrata português deixaram que esse princípio estivesse inscrito na constituição.

Muito curioso, porque esse princípio está na constituição por 85% da representação parlamentar, visto que, como sabe, só o pequeno CDS votou contra a constituição e, portanto, contra esse princípio.

Que alguma vez cairá, ou não?

Ah, sim, sim. Quer dizer, cair ou não cair é igual. Mas esse é um resquício ideológico dessa marca. Há outros, eventualmente mais contraditórios, na verdade, como muitas funções do Estado que o Estado, obviamente, não assegura nem vai assegurar.